As frases abaixo são como “vozes” da consciência,
segundos antes do comportamento...
“– Vou parar aqui mesmo! É só pra João Marcos entrar no colégio com
segurança...” (para em fila dupla).
“– Não atrapalha tanto assim o trânsito... Vou atender!” (usa o celular
enquanto dirige).
“– Ele vai desfilar em vez de passar.” (não prioriza o pedestre que está
esperando na faixa).
“– Não há fiscalização!” (dirige em alta velocidade).
O que elas têm em comum? São justificativas que damos a nós mesmos (ou
autojustificativas), após a consciência interrogar sobre a razão de fazermos
algo errado. Autojustificativas como estas, que atentam contra nossa moralidade,
isto é, contra nosso conjunto de princípios sobre o que é certo ou errado, com o
objetivo de alcançarmos um benefício momentâneo, chamam-se: Desengajamento
moral.
Sua
função é fazer com que não soframos – ou não soframos tanto – por uma ação que
normalmente reprovamos em nós mesmos. Ao “relaxarmos” a autocensura, diminuímos
o sentimento de culpa. Por essa razão, uma pessoa tão boa e cordial como você,
amigo leitor, poderá agir de maneira muito má e egoísta no trânsito. Mesmo que
seja um intelectual reconhecido internacionalmente, professor da Universidade de
Harvard, ex-professor do atual presidente dos Estados Unidos, e ministro de
estado no governo Lula (veja foto ao lado e a nota:"Ministro Mangabeira Unger estaciona carro em vaga
para deficientes").
Mas, como se constrói esse tipo de autojustificativa? De várias maneiras,
afinal, o ser humano é muito criativo. Para entender, é preciso, primeiramente,
ter clareza que, em qualquer situação, existe pelo menos: (1) a conduta
repreensível, (2) seu efeito e (3) a possível vítima. Esses três elementos – ou
a combinação entre eles –, por sua vez, são as bases racionais da transgressão.
A autojustificativa com base na conduta repreensível, por exemplo,
geralmente é feita reinterpretando nossa ação para torná-la aceitável.
Interessante, não? Um exemplo é o primeiro pensamento no início do texto: “...É
só pra João Marcos entrar no colégio com segurança...”. Neste caso, a mãe de JM
tenta tornar a conduta transgressiva – parar em fila dupla – numa conduta
aceitável e prioritária, que é proporcionar segurança ao filho.
A autojustificativa com base no efeito da transgressão, por sua
vez, é realizada pela deturpação ou desconsideração das consequências danosas da
nossa ação. Visa especificamente a minimizar a intensidade dos (possíveis) danos
causados, como no segundo pensamento: “– Não atrapalha tanto assim o trânsito...
Vou atender!”. Com isso, o motorista desconsiderou as consequências de atender o
celular enquanto dirige.
A autojustificativa a partir da vítima acontece quando o
praticante da ação, isto é, o transgressor, inverte a situação. Ele culpa ou
desmerece a vítima, conforme o terceiro pensamento: “– Ele vai desfilar em vez
de passar”. O pedestre é o culpado do motorista não parar (por “desfilar” em vez
de “passar”), razão pela qual não merece prioridade. Quanta criatividade!
Finalmente, existe outra maneira de se construir essas autojustificativas.
O praticante da conduta ofusca a sua responsabilidade pessoal sobre a ação.
Repare no quarto pensamento acima: “– Não há fiscalização!”. (dirige em alta
velocidade).
Apesar de todo esse esforço pessoal – seja de reinterpretar a situação
tornando-a aceitável, de deturpar ou desconsiderar as consequências danosas,
culpar a vítima ou de ofuscar nossa responsabilidade –, o comportamento imoral
pode ter consequências muito graves para as pessoas e para nós. Por exemplo, num
caso real, parar em fila dupla para deixar o filho na escola quase terminou em
assassinato. Semelhante ao exemplo no início do texto, uma mãe trancou, por
alguns minutos, uma pista em frente ao colégio do filho. Profundamente irritado,
um motorista de van escolar que estava logo atrás, desceu armado para tomar
satisfação. Felizmente, os transeuntes o imobilizaram. Tudo começou com o
desengajamento moral...
Esse é um caso extremo, claro; mas ilustra as consequências potencialmente
desastrosas desse tipo de autojustificativa. Isto porque, ao mesmo tempo em que
nos permitimos fazer o que é errado, também prejudicamos nossa avaliação das
consequências objetivas do comportamento. Afinal, a autojustificativa, de
maneira alguma, diminui objetivamente o dano decorrente da transgressão. Pense
nisso!
Para ajudar ainda mais em suas reflexões, seguem algumas situações muito
comuns em que você poderá sentir-se propenso a se desengajar moralmente. Para
cada situação, peço que identifique as autojustificativas mais frequentes que
lhe permitem fazer o que não é certo.
Exemplo:
- Ultrapassar o sinal vermelho: “não tem fiscalização eletrônica”, “tô atrasado”, “já fiquei parado tempo demais neste cruzamento”, “o sinal verde fica pouco tempo”
- Dar uma “fechada” em alguém:_______________________________________
- Jogar lixo pra fora do carro:__________________________________________
- Estacionar em local proibido:_________________________________________
- Tomar uns choppinhos antes de dirigir:_________________________________
- Passar por cima de um canteiro para cortar caminho:______________________
- Estacionar em vagas reservadas inadequadamente:________________________
- Virar em local proibido:_____________________________________________
- Não usar cinto de segurança:_________________________________________
- Estacionar em cima da calçada:_______________________________________
Agora pense nas consequências reais ou potenciais para as pessoas ou para
você decorrentes disso...
Espero que, ao final deste exercício, você mesmo possa identificar as
situações e evitar seu desengajamento moral, mantendo-se coerente como uma
pessoa boa e cordial em qualquer situação, inclusive no trânsito.
Agradecimentos:
À professora Ms. Lílian de Cristo e ao professor Dr.
Fábio Iglesias, do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, pela
leitura crítica da versão preliminar deste texto.
Para saber mais:
Bandura, A., Barbaranelli, C., Caprara, G. V., & Pastorelli, C. (1996).
Mechanisms of moral disengagement in the exercise of moral agency. Journal
of Personality and Social Psychology, 71(2), 364-374.
Iglesias, F. (2008). Desengajamento moral. In A. Bandura, R. Azzi & S.
Polydoro (Eds.), Teoria social cognitiva: Conceitos básicos
(pp.165-176). Porto Alegre: Artmed.
Neto, I. L., Iglesias, F., & Günther (2012). Uma medida de
justificativas de motoristas para infrações de trânsito. Psico, 43(1),
7-13. Disponível em:
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/viewFile/11088/7613
Fonte:
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