Irene Rios
Penso que uma cidade é construída sobre relações humanas, gente se encontrando, e, entre outras coisas, o amor incrementaria as próprias coisas que são desejáveis numa cidade.
Penso que uma cidade é construída sobre relações humanas, gente se encontrando, e, entre outras coisas, o amor incrementaria as próprias coisas que são desejáveis numa cidade.
James
Hillman
As palavras de Hillman (1993, p. 42) indicam a
importância das relações humanas e de amor para o desenvolvimento da cidade.
Essa relação de amor pelo próximo e pela cidade envolve todos que partilham o
mesmo espaço nas vias, ou seja, motoristas, pedestres e ciclistas. Exige, segundo
Duarte Jr., um compromisso social.
Dessa relação, portanto, emerge em nós um
sentimento de instalação no mundo e de compromisso social, não só com o
próximo, a partilhar o mesmo espaço, mas também com o nosso ambiente e as
coisas que o preenchem. Passear pela paisagem urbana se mostra, pois,
fundamental para a constituição de uma realidade estável, sensível e
acolhedora, uma realidade com a qual nos identificamos e pela qual nos sentimos
um pouco responsáveis. (DUARTE JR., 2001, p. 85).
O autor argumenta que somos
responsáveis pela realidade do nosso ambiente e que passear pela cidade é
fundamental para tornar essa realidade estável, sensível e acolhedora. Esse “passear”
refere-se ao ato de caminhar, de transitar pela cidade a pé, a maneira mais antiga
e natural que existe para a realização de um deslocamento. No dia-a-dia das
grandes cidades, com o aumento de calçadões e da distância dos estacionamentos,
mesmo que estejamos nos locomovendo por meio de veículo motorizado, na maioria
das viagens, precisamos também caminhar. Contudo, esse caminhar, muitas vezes,
é individualista e sem compromisso com o próximo e com a cidade. Duarte Jr. (2001, p. 84) destaca que, para os habitantes de
nossas cheias metrópoles, “[...] o andar significa tão-só uma ação mecânica que
os conduz de um ponto a outro, a transposição de uma distância que não pode ser
vencida com o concurso de máquinas ou equipamentos”.
A
falta de compromisso social induz as pessoas a não se enxergarem como solução
para os problemas no trânsito. Podemos conferir este ponto de vista dos
cidadãos na pesquisa realizada pelo Ministério das Cidades.
Pesquisas do Ministério das Cidades indicam
que a atitude normal das pessoas é culpar os demais pelos problemas no
trânsito. De acordo com as 2.000 entrevistas, 3 em cada 4 brasileiros se
enxergam como solução, em vez de problema no trânsito. E consideram não ser
necessário mudar suas atitudes.
Observa-se que a maioria dos problemas é
atribuída às práticas dos “outros” e quase nunca à própria conduta ao volante,
nas ruas e calçadas. Apenas quando indagados de forma objetiva sobre certas
atitudes (como o uso do cinto no banco traseiro, o respeito aos limites de
velocidade, a preocupação em beber e dirigir, o uso da faixa de pedestre, etc.)
é que alguns reconhecem falhas e passam a se ver mais como problema do que como
solução.
Apenas os motoristas de carro veem em seus
iguais o “principal adversário”. Ciclistas e motociclistas acham que a culpa
costuma ser dos motoristas de carro. Já os motoristas profissionais culpam os
ciclistas. (BRASIL, 2011).
Com o objetivo
de conscientizar a população brasileira sobre a necessidade de mudança de atitude
das pessoas no trânsito, para torná-lo um espaço de convivência mais pacífico e
seguro, o Ministério das Cidades, em parceria com o Denatran, promoveu, em
julho de 2011, a Campanha Pedestre.
“Pare, pense, mude”.
O planejamento dessa campanha iniciou com uma pesquisa sobre a percepção das
pessoas em relação aos problemas no trânsito (o resultado está na citação
anterior). Essa é a metodologia recomendada na resolução 314 do Contran
(BRASIL, 2009).
O lema da
campanha é: “O trânsito só muda quando a gente muda”. A veiculação da campanha
foi por meio de comerciais veiculados nas TVs, nos rádios, nos anúncios em
revistas e na Internet e nas redes
sociais. Ela foi divulgada, também, em espaços exteriores de grande circulação
de pessoas e veículos, por meio de mensagens educativas nos postos de gasolina,
pedágios, paradas de ônibus, para-brisas de taxis e ônibus e outdoors em avenidas e estradas para orientar
os motoristas que saíram de férias.
Faz
parte dessa campanha, o vídeo, com duração de 15 segundos, contendo a
representação de uma entrevista realizada com uma senhora idosa.
Vídeo - Pedestre.
"Pare, pense, mude"
O repórter
pergunta à senhora que está atravessando a rua: “O que você faria para melhorar
o trânsito?”. Ela responde: “Ah! Tá tudo errado, os motoristas não enxergam
mais a gente”. Então, o repórter questiona: “O que mudaria em você para
melhorar o trânsito?”. A senhora responde, olhando a sua volta: “Ai, que
vergonha! Eu tô fora da faixa! Você não vai passar isso não, né?”. Na
sequência, aparece a legenda e o áudio com os seguintes dizeres: “O Trânsito só
muda quando a gente muda”. O filme encerra com a imagem e o áudio do lema da
campanha: “Pare! Pense! Mude!”. Esse vídeo, por provocar graça, devido à reação
da entrevistada ao perceber que estava fora da faixa, possui o estilo cômico.
Essa campanha proporciona a reflexão sobre dois
importantes aspectos: o primeiro refere-se às dificuldades enfrentadas pelos
idosos ao caminhar pelas vias, principalmente ao atravessar as ruas. Segundo Wold:
Atravessar a rua é um problema significativo
para pedestres idosos. Um estudo revelou que apenas 1% dos idosos independentes
acima dos 72 anos é capaz de atravessar a rua no tempo determinado pelo sinal
de pedestres. Ainda que a incidência de acidentes nesse caso seja baixa, o
risco de ferimentos graves é alto. (WOLD, 2013, p. 379).
A
dificuldade de locomoção das pessoas idosas, aliada à pressa e à falta de
respeito dos motoristas, faz com que os idosos sintam-se muito inseguros quando
vão atravessar a rua.
O
segundo aspecto percebido no vídeo é a atitude da idosa, que reclamava da falta
de respeito no trânsito, mas também não estava respeitando a sinalização. Esse
aspecto foi percebido por diversos estudantes da Educação de Jovens e Adultos –
EJA – do Ensino Médio, sujeitos de
uma pesquisa que realizei sobre a percepção sensível relacionada às campanhas
educativas para o trânsito. Os sujeitos observaram
que:
“A senhora queria os direitos dela no trânsito, mas nem ela
respeita as leis.” (Sujeito 8).
“Uma senhora reclamando do trânsito, mas esquecendo que a mudança
tem que começar por nós mesmos, pois ela estava cometendo uma infração.” (Sujeito 16).
“As pessoas cobram dos outros, mas não se cobram a si mesmo...” (Sujeito 19).
A atitude da idosa pode ser comparada a atitude da esposa,
personagem da parábola Os Lençóis da Vizinha.
Um casal, recém-casado, mudou-se
para um bairro muito tranquilo. Na primeira manhã que passavam na casa,
enquanto tomavam café, a mulher reparou através da janela em uma vizinha que
pendurava lençóis no varal e comentou com o marido:
- Que lençóis sujos ela
está pendurando no varal! Está precisando de um sabão novo! Se eu tivesse
intimidade perguntaria se ela quer que eu a ensine a lavar as roupas!
O marido a tudo
escutava, calado.
Alguns dias depois,
novamente, durante o café da manhã, a vizinha pendurava lençóis no varal e a
mulher comentou com o marido:
- Nossa vizinha continua
pendurando os lençóis sujos! Se eu tivesse intimidade, perguntaria se ela quer
que eu a ensine a lavar as roupas!
E assim, a cada dois ou
três dias, a mulher repetia seu discurso, enquanto a vizinha pendurava suas
roupas no varal.
Passado um mês, a mulher
se surpreendeu ao ver os lençóis muito brancos sendo estendidos e, toda
empolgada, foi dizer ao marido:
- Veja, ela aprendeu a
lavar as roupas! Será que a outra vizinha a ensinou? Porque eu não fiz nada!
O marido calmamente
respondeu:
- Não, hoje eu levantei
mais cedo e lavei os vidros da nossa janela! (Autor desconhecido)
A
esposa critica a vizinha sem perceber que era ela que estava errada. No caso da
idosa, ela critica os motoristas sem se dar conta que também está agindo
incorretamente, atravessando a rua fora da faixa de pedestres.
O
comportamento da senhora idosa sensibilizou os sujeitos da pesquisa, entre as
manifestações de sentimentos. Vale destacar o comentário do Sujeito 3: “Senti um pouco de culpa, pois a gente sabe que é errado e
atravessa a rua fora da faixa de pedestres.” Muitas pessoas são imprudentes
conscientemente, ou seja, sabem que estão erradas, mas fazem. Por que agem
assim? Por que se comportam como homens
bárbaros?
Conforme
Schiller
(1995, p. 33),
o homem pode ser selvagem, “quando seus sentimentos imperam sobre seus
princípios”, ou bárbaro, “quando seus princípios destroem seus sentimentos”. O
autor argumenta, no entanto, que há também o homem cultivado, aquele que “faz
da natureza uma amiga e honra sua liberdade, na medida em que apenas põe rédeas
a seu arbítrio” (SCHILLER, 1995, p. 33).
Podemos deduzir, pelo pensamento de Schiller, que, no trânsito, convivemos com o cidadão
selvagem, aquele que não conhece as
leis e a maneira correta e segura de transitar e deixa-se levar pelo impulso e
pelos sentimentos; com o cidadão bárbaro,
aquele que tem conhecimento sobre as leis e às regras de segurança no trânsito,
mas age com base em seus princípios, com imprudência e sem obedecer às leis; e
com o cidadão cultivado, aquele que é
sensível, controla sua liberdade e, consequentemente, é educado e prudente no
trânsito.
Assim sendo, talvez as pessoas que agem como homens bárbaros no trânsito o
fazem porque estão dando mais atenção aos seus princípios, do que aos seus
sentimentos. São pessoas que não controlam seu livre-arbítrio e cometem todo
tipo de infração. É
possível que tais atitudes estejam relacionadas aos valores profundamente enraizados. Sobre esse assunto, Pinto explica
que:
Os esforços para mudar os valores
profundamente enraizados estão entre as causas mais difíceis de serem levadas a
efeito. O sentido de identidade e bem-estar de um indivíduo está enraizado em
seus valores básicos. Seus valores básicos orientam suas percepções e escolhas
sociais, morais e intelectuais. A intromissão da dissonância em seu conjunto de
valores criará um intenso constrangimento e stress.
Ele procurará evitar as informações dissonantes, ou irá desprezá-las pela
racionalização, ou as colocará de lado para que não afetem seus próprios
valores. O sistema psicológico humano resiste à informação que o desoriente.
(PINTO, 2002, p. 22).
Pelo
visto, a tarefa da educação para o trânsito, de alterar os valores profundamente enraizados, a fim de provocar a mudança de
atitudes nas vias, é um grande desafio.
Em relação à campanha: Pedestre. "Pare,
pense, mude",
consideramos importante destacar a interrogação do sujeito 19: “Como educar os novos se os mais experientes,
"idosos", não dão exemplo?” (Sujeito 19). Entende-se que os mais
velhos, por possuir mais experiência, devem servir de exemplo aos mais novos.
Quando isso não acontece, como demonstrou a senhora idosa, personagem da
campanha, parece que estamos enfrentado um problema sem solução, ou seja, temos
a impressão de que os mais jovens estão condenados a serem também imprudentes
no trânsito.
Por outro
lado, é importante ressaltar que alguns sujeitos da pesquisa indicaram soluções
para a falta de harmonia
no trânsito.
Destacamos, assim, as seguintes falas:
“Que não adianta reclamar sobre mudanças se não mudar seus
próprios hábitos.” (Sujeito 14).
“Que bom seria se motoristas e
pedestres tivessem educação, respeito, consciência e vontade para mudarmos o
trânsito e diminuirmos os números de acidentes.”
(Sujeito 16).
Podemos
perceber que eles realçaram a importância da mudança de atitudes individuais
para transformar o trânsito e que essa mudança deve partir dos motoristas e dos
pedestres. Tal mudança refere-se a um compromisso motivado pelo amor à vida e ao
próximo. São atitudes pessoais que envolvem a alteração de valores profundamente enraizados. São condutas com propósito
coletivo, em prol do bem comum, em prol das relações humanas na cidade e em
prol da cidade. É a construção da cidade a partir das relações humanas,
idealizada por Hillman (1993),
ou seja, uma cidade composta por pessoas que se encontram e que com amor fazem-na
desenvolver.
REFERÊNCIAS
BRASIL.
Departamento Nacional de Trânsito.
2011. Disponível em: http://www.denatran.gov.br/ultimas/20110630_decada.htm. Acesso em: 25 jan. 2013.
______.
Departamento Nacional de Trânsito / Ministério das Cidades. Parada: Pacto Nacional pela Redução de
Acidentes / campanhas. Pedestre. "Pare,
pense, mude"
2012b.
Disponível em: http://www.paradapelavida.com.br/campanhas/pare-pense-mude-junho-de-2011/. Acesso em: 27 fev.
2013.
______. Departamento Nacional de Trânsito /
Ministério das Cidades. Resolução 314.
2009. Disponível em: http://www.denatran.gov.br/download/Resolucoes/RESOLUCAO_CONTRAN_314_09.pdf. Acesso em: 31 mar.
2013.
DUARTE
JR., João Francisco. O sentido dos sentidos. Curitiba: Criar, 2001.
HILLMAN,
James. Cidade & alma. São
Paulo: Studio Nobel, 1993.
PINTO, Paulo Fernando de Ascenção. Avaliação da compatibilidade entre a mídia
televisiva e as campanhas educativas para o trânsito. Dissertação de
Mestrado. Universidade de Brasília, 2002.
SCHILLER,
Friedrich. A educação estética do homem. 3. ed. Trad. Roberto Schwarz e
Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1995.
WOLD,
Glória. Enfermagem gerontológica.
Tradução: Ana Helena Pereira Correa. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
Irene Rios
Mestra em Educação, com a pesquisa: CAMPANHAS EDUCATIVAS PARA O TRÂNSITO: a percepção sensível de jovens e adultos; Especialista em Ambiente, Gestão e Segurança de Trânsito e em Metodologia de Ensino; Graduada em Letras Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa; Consultora e co-autora do projeto “Gincana Cultural de Trânsito”, vencedor do XII Prêmio Denatran de Educação no Trânsito - 2012 - na categoria "Educação no Trânsito - Projetos e Programas"; Presidente da Câmara Catarinense do Livro; Professora universitária de disciplinas na área de Educação para o Trânsito; Autora de artigos e livros sobre Educação para o Trânsito.
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