Irene Rios
[...] na rua não vemos sentimentos ou nos sensibilizamos com rostos e
atitudes, mas enxergamos simplesmente posições sociais: formas corporais,
feiuras ou belezas, roupas e signos profissionais ou de posicionamento social.
Roberto da Matta
Matta (2010) provoca-nos a
pensar e a indagar sobre o que vemos no trânsito, sobre o quanto as pessoas
preocupam-se apenas com aparências e status,
sem prestar atenção no outro, tratando-os com indiferença. Essas atitudes
demonstram a falta de sensibilidade dos cidadãos quando estão transitando.
Vanderbilt (2009) reforça a
afirmação de Matta ao enfatizar que a simples ação da troca de olhares entre os
usuários das vias é considerada uma dificuldade para muitos.
Pelo fato de o
contato visual ser tão raro no trânsito, quando ele acontece a sensação pode
ser de desconforto. Você já parou em um sinal e “sentiu” que alguém em um dos
carros ao lado estava olhando para você? Provavelmente ficou incomodado. A
primeira razão é que isso pode violar o senso de privacidade que sentimos no
trânsito. A segunda é que não há propósito algum para isso, tampouco uma reação
neutra apropriada, uma condição que pode provocar uma reação de lutar ou fugir.
Então, o que você fez no cruzamento quando viu alguém olhando para você? Se
acelerou, você não foi o único. (VANDERBILT,
2009, p. 28).
As situações citadas por
Vanderbilt (2009) fazem parte de uma cultura em que prevalece o individualismo,
o hábito de nos ocuparmos apenas conosco, com o que nos convém - situações cada
vez mais presentes na vida contemporânea. Estamos tão acostumados à
insensibilidade no trânsito que, quando percebemos que alguém está nos olhando,
nesse ambiente, ficamos incomodados e procuramos afastar-nos dessa situação.
Contudo, o que nos faz agir dessa maneira, sem olhar, sem sentir, sem perceber
e sem refletir sobre o que está em nossa volta? Talvez a pressa do dia a dia
causada, geralmente, pelo excesso de tarefas, faze-nos correr contra o tempo.
Parece que se pararmos para a travessia de um pedestre vamos perder tempo.
Outro motivo que pode
influenciar a nossa falta de sensibilidade é a insegurança emanada pelas
características da modernidade. Nosso cotidiano está repleto de casos que nos
assustam e nos deixam inseguros. Duarte Jr. (2001) cita algumas dessas
ocorrências:
[...] a situação
afigura-se delicada e perigosa, com seus múltiplos sintomas a nos rodear:
desequilíbrios ambientais, ameaças de acidentes e guerras nucleares, venenos e
poluição empestando o ambiente, efeito estufa, hordas de famintos, exércitos de
sem-terras e sem-tetos, fanatismos, assaltos, sequestros, violência gratuita,
atentados terroristas, doenças misteriosas e letais, etc. (DUARTE JR., 2001, p.
72).
São situações que provocam,
além do medo e da insegurança, a falta de confiança nas pessoas que não
conhecemos. É como se o outro representasse uma ameaça à nossa luta diária pelo
poder, pelo prazer e pela sobrevivência. Ignorá-lo, então, seja no espaço do
trânsito, ou em outros espaços, significa um “cuidado de si”.
Por outro lado, muitas vezes,
há resistências às experiências estéticas, ou seja, às situações que envolvem a
percepção sensível e as emoções, devido ao hábito de se ver o mundo de modo
prático. Cabe aqui, novamente, o esclarecimento de Duarte Jr. (2001) sobre a
diferença do olhar estético e o modo prático de ver o mundo.
O modo prático de
ver o mundo orienta-se movido pelas questões “o que posso fazer com isto e que
vantagens posso obter disto?”, ao passo que o olhar estético não interroga, mas
deixa fluir, deixa ocorrer o encontro entre uma sensibilidade e as formas que
lhe configuram emoções, recordações e promessas de felicidade. Desta maneira,
do topo de uma montanha, ao observar o rio que lá embaixo serpenteia pelo vale,
o olhar poético pode apreendê-lo enquanto metáfora da vida sempre a correr num
cenário natural, enquanto o modo prático de enxergar provavelmente se porá a
investigar as possibilidades de ali ser construída uma barragem que alimentaria
uma lucrativa usina hidrelétrica. (DUARTE JR., 2001, p. 102).
“O modo prático de ver o
mundo” (DUARTE JR., 2001) pode ser identificado também no trânsito - espaço
disputado por pessoas, muitas delas apressadas, preocupadas com o tempo e com o
seus objetivos individuais. Seres humanos que, talvez, por olharem o mundo de
modo prático, ao perceberem que não há fiscalização na rodovia, tiram proveito
disso em prol de seu benefício, cometendo infrações como dirigir em alta
velocidade, falar ao celular ao volante, estacionar sobre as calçadas.
Em uma analogia com o exemplo
citado por Duarte Jr., podemos fazer a seguinte suposição: se formos fazer uma
pesquisa a fim de obter sugestões para a melhoria na mobilidade urbana,
provavelmente o indivíduo que vê o mundo de modo prático, sendo motorista, irá
afirmar que é preciso construir mais
faixas de tráfego, aumentar a quantidade de vagas de estacionamento e alargar
os leitos, nem que, para isso, seja necessário o estreitamento das calçadas, destinadas
aos pedestres. Sendo pedestre, este, possivelmente, irá sugerir que as calçadas
e os canteiros centrais das rodovias sejam mais largos, mesmo que, para isso,
seja necessário o estreitamento dos leitos. Caso essas pessoas pesquisadas
tenham um olhar estético, provavelmente, independentemente se na condição de
motorista ou de pedestre, irão fazer sugestões em prol do bem comum, pois se deixarão
levar pela percepção sensível.
Ver o mundo apenas de modo
prático, além da insensibilidade, estimula a falta de honestidade e a falta de
solidariedade - valores indispensáveis no ambiente do trânsito. Olhar para o
outro procurando apenas obter vantagens, preocupar-se só com as questões
sociais e práticas, torna os cidadãos mais individualistas e incapazes de
conviver em um espaço compartilhado, como o das vias. Além disso, essa
praticidade incentiva a falta de harmonia, de tranquilidade e de segurança no
trânsito.
Por outro lado, olhar o mundo
e dar oportunidade para o sentimento fluir, permitindo que os sentidos atuem,
poderá proporcionar profundas emoções, importantes reflexões e grandes
transformações. Por isso, a importância de uma educação para o trânsito que
comova o público alvo e que provoque a reflexão sobre as consequências das
atitudes nas vias.
REFERÊNCIAS
DUARTE JR., João Francisco. O sentido dos
sentidos. Curitiba: Criar, 2001.
MATTA, Roberto da. Fé em Deus e pé na tábua. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
VANDERBILT, Tom. Por que dirigimos assim?: e o que isso
diz sobre nós. Rio de Janeiro: Campus, 2009.
Irene Rios
Mestra em Educação, com
a pesquisa: CAMPANHAS EDUCATIVAS PARA O TRÂNSITO: a percepção sensível de
jovens e adultos; Especialista em Ambiente, Gestão e Segurança de Trânsito e em
Metodologia de Ensino; Graduada em Letras Língua Portuguesa e Literaturas de Língua
Portuguesa; Consultora e co-autora do projeto “Gincana Cultural de Trânsito”,
vencedor do XII Prêmio Denatran de Educação no Trânsito - 2012 - na categoria
"Educação no Trânsito - Projetos e Programas"; Presidente da Câmara
Catarinense do Livro; Professora universitária de disciplinas na área de
Educação para o Trânsito; Autora de artigos e livros sobre Educação para o
Trânsito.
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