14 de abr. de 2014

“O efeito do álcool passa, a culpa fica para sempre”

Irene Rios

            Este estudo faz parte de uma pesquisa realizada com estudantes da Educação de Jovens e Adultos – EJA - do Ensino Médio relacionada a percepção sensível sobre a campanha audiovisual Bebida e direção. O efeito do álcool passa, a culpa fica para sempre”, uma peça publicitária pertencente à Campanha promovida pelo Ministério das Cidades em parceria com o Denatran.

Lançada no dia 19 de dezembro de 2011, a campanha teve como meta reverter o quadro de violência no trânsito que marca as comemorações  de fim de ano, quando o número de acidentes causados pela embriaguez aumenta muito.
A campanha “Bebida e direção. O efeito do álcool passa, a culpa fica para sempre” foi divulgada em todo o território nacional por meio de filmes publicitários para TV, spots para rádio, peças gráficas, materiais para mídia exterior, sites e redes sociais.
As peças publicitárias foram dirigidas a todos os segmentos da sociedade com o objetivo de sensibilizar as pessoas com as tragédias causadas pela combinação de bebida e direção. (BRASIL, 2011).

Vídeo - Depoimento - Bebida e direção. “O efeito do álcool passa, a culpa fica para sempre”

           

Trata-se de um filme com duração de 30 segundos, baseado em fatos reais, que reproduzem o depoimento emocionado de um motorista narrando que tem uma culpa que irá levar por toda sua vida. Na festa da empresa bebeu e achou que estava bem para dirigir. Perdeu a noção de velocidade, invadiu a calçada e atropelou uma criança de cinco anos. Ele descreve que ficou desesperado, que tentou socorrer e que os olhinhos assustados da criança não saem de sua cabeça. Faz as seguintes reflexões: “Quantos sonhos eu destruí! Por que eu fui beber e dirigir? Uma criança...” O vídeo termina com a imagem e o áudio do lema da campanha “O efeito do álcool passa, a culpa fica para sempre”. O estilo desse vídeo pode ser classificado, segundo os estilos de Lima (2009), como emotivo, pois apresenta o depoimento emocionado de uma pessoa que se envolveu em uma violência viária que teve como consequência a morte de uma criança.
            A campanha dá ênfase ao depoimento do personagem, apresentado após ter cometido uma infração que teve como consequência a morte de uma criança. O depoimento, de acordo com os sujeitos da pesquisa, demonstra o sentimento de culpa do infrator, como podemos observar nas falas que seguem:

“Vi um homem psicologicamente abalado pelo fato de cometer um erro que trouxe graves consequências.” (Sujeito 16).[2]

“Um homem desesperado por ter dirigido bêbado e ter atropelado uma criança, arrependido e se sentindo culpado.” (Sujeito 21).

As expressões de tristeza apresentadas pelo personagem protagonista do filme demonstram desespero e arrependimento. Novaes (2005, p. 61) esclarece que a culpa é descrita, muitas vezes, por sensações como “peso”, “que mói por dentro”, “que corrói”, “que tortura”.
O motorista, personagem da campanha, sente-se responsável pela morte da criança. Ele tem consciência de que foi imprudente ao dirigir sob a influência de álcool e demonstra sua culpa e arrependimento. Conforme Pompeia e Sapienza, com a culpa surge o remorso:

É aquele molestar insistentemente com pensamentos e sentimentos desagradáveis, uma sensação de que alguma coisa não foi como devia e a gente tem algo a ver com isso. Esse sentimento pode ser mais preciso ou mais difuso, pode ser identificado com clareza, mas traz sempre um mal-estar. (POMPEIA; SAPIENZA, 2004, p. 89).

            Os autores esclarecem, ainda, que a culpa vem acompanhada do sentimento de vergonha e de uma sensação de conflito, “eu e mim mesmo” ou “eu e minha ação”. (POMPEIA; SAPIENZA, 2004, p. 91). Eles explicam que, na experiência de culpa, aparecem sentimentos como: “deveria ter tido mais cuidado”; “ter avaliado melhor a situação”; “Enfim, lido sempre, de um lado, com o que fui capaz de ser e, de outro, com o que sinto que gostaria de ter sido capaz de ser.” (POMPEIA; SAPIENZA, 2004, p. 95).
            Por isso a sensação de culpa pode levar a pessoa ao desespero. Esse desespero, provocado pelo sentimento de culpa, faz parte da história literária. Pompeia e Sapienza (2004, p. 95) relembram a tragédia de Édipo, escrita por Sófocles, no século V a. C. Édipo matou um desconhecido sem saber que era seu pai. Casou-se com sua mãe e teve filhos com ela, também sem saber que sua esposa era sua mãe. Ao conhecer sua verdadeira identidade, Édipo desespera-se e fala: “Oh! Ai de mim! Tudo está claro! Ó luz, que eu te veja pela derradeira vez! Todos agora sabem: tudo me era interdito: ser filho de quem sou, casar-me com quem me casei... e... e... eu matei aquele a quem eu não poderia matar!” (SÓFOCLES, 2005, p. 86). Ao ver que sua mãe e esposa suicidou-se, Édipo, tomado pela culpa e pelo desespero, castiga-se furando seus olhos, tornando-se assim cego pelo resto da vida.
            Os sentimentos de culpa e de arrependimento demonstrados na declaração do motorista que dirigiu sob influência de álcool e atropelou e matou uma criança, causaram comoção nos sujeitos da pesquisa. Muitos afirmaram terem sentido tristeza ao assistir ao vídeo, como demostram suas falas a seguir:

“É realmente triste saber que muitas pessoas hoje cometem esse crime [...]”. (Sujeito 7).

“Eu senti um drama muito forte porque ele teve um sentimento de culpa.” (Sujeito 13).

“Fiquei triste por ele ter atropelado e sem querer tirado a vida de uma criança.” (Sujeito 21).

            A comoção está relacionada às emoções e indica sensibilidade, uma característica do ser humano relacionada aos sentidos. Com a contemporaneidade, muitas vezes a sensibilidade vem sendo esquecida, até em nosso próprio lar, conforme descreve Duarte Jr.

[...] a nossa casa veio deixando de ser um lar, no sentido de constituir uma extensão de nossas emoções e sentimentos, veio deixando de ser um lugar expressivo da vida de seus moradores e da cultura onde se localiza. Foi se transformando, nesta expressão difundida, numa “máquina de morar”, fria e estritamente utilitária, sem o aconchego e o afeto de uma verdadeira morada. (DUARTE JR., 2001, p. 91).

Essa falta de sensibilidade, descrita por Duarte Jr., vai além da nossa casa, acontece também em outros ambientes como: na escola, no cinema e no trânsito.  Em se tratando do último, parece que os acontecimentos cotidianos são cenas de ficção, que a violência que acontece diariamente nas vias não é real. Esquecemos, assim, que os automóveis são guiados por seres humanos - parece que são apenas máquinas, sem sentimentos.
No entanto, podemos identificar nas falas dos sujeitos da pesquisa suas percepções sensíveis sobre o tema. É possível observar que, ao assistirem o depoimento do motorista imprudente sobre sua tristeza e arrependimento, eles se apropriaram dos seus sentimentos, permitindo a fluidez das emoções. Essa apropriação é perceptível, também, em algumas respostas dadas sobre a situação em que o filme fez pensar:

“No caso, me fez pensar que, imagina se fosse o meu filho.” (Sujeito 12).

“Esse filme me fez pensar cada vez que vou para as baladas e dirijo sob efeito de álcool e que, muitas vezes, ainda faço isso em alta velocidade.” (Sujeito 13).

“Quando ele relatou o fato, imaginei quantas pessoas saem para se divertir e não voltam, por imprudência de outras pessoas.” (Sujeito 19).

“Num atropelamento que meu marido fez, mas ele não tinha bebido.” (Sujeito 20).

“Na dor que a família da criança estava sentindo.” (Sujeito 23).

Podemos notar que muitos relataram situações relacionadas à imprudência e à violência no trânsito. Alguns inclusive colocaram-se no lugar do motorista imprudente ou da vítima. A morte da criança foi considerada o ponto forte do filme pela maioria dos sujeitos da pesquisa.
A criança representa o futuro da nação. Ela é um ser desprotegido e frágil, que precisa de cuidados e que tem seus direitos. Nos artigos 15, 16 e 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), está destacado que a criança e o adolescente têm direito à vida, ao respeito, à dignidade, à saúde, a ir e vir e estar com segurança em locais públicos.
Esses direitos não estão sendo garantidos às crianças e aos adolescentes.  A cada dia, há menos segurança para esses seres transitarem, seja a pé, de bicicleta, ou de veículo automotor. Essa insegurança tem resultado no aumento de mortes e feridos no trânsito, envolvendo crianças e adolescentes.
Segundo dados do Observatório Nacional de Segurança Viária,

Houve um aumento no número de ocorrências de trânsito registradas envolvendo crianças e adolescentes no primeiro semestre de 2013, se comparado com o mesmo período do ano passado. Na faixa de 0 a 7 anos, o aumento foi de 24%, passando de 2.560 para 3.178. Já na faixa etária de 8 a 17 anos, o aumento foi ainda maior: passou de 8.839 para 11.461, um crescimento de 30%. (ONSV, 2013).

Muitas crianças e adolescentes estão se ferindo ou perdendo a vida no trânsito, por irresponsabilidade dos adultos, que, provavelmente sem medir as consequências, cometem todo tipo de infração, como a citada no vídeo A. Os adultos têm o dever de cuidar da criança e do adolescente, conforme estabelecido no Art. 18 do ECA: “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. (BRASIL, 1990).
A morte de um ser desprotegido pela falta de responsabilidade de um adulto provocou a sensibilidade nos participantes. Assim sendo, representar situações que envolvam crianças pode ser uma referência a futuras campanhas educativas para o trânsito.
            Os sujeitos da pesquisa informaram, ainda, que a mensagem deixada pela campanha foi “Se beber não dirija”. Esse resultado vai ao encontro do objetivo da campanha: Depoimento - Bebida e direção. “O efeito do álcool passa, a culpa fica para sempre”, ou seja, “[...] sensibilizar as pessoas com as tragédias causadas pela combinação de bebida e direção” (BRASIL, 2011).
A atitude de dirigir sob o efeito de álcool representa uma grande irresponsabilidade, com consequências irreparáveis, conforme observamos no vídeo em questão. Campanhas que orientam a população sobre os riscos de beber e dirigir são fundamentais. Os sujeitos da pesquisa demostraram perceber isso nos depoimentos, justificando a importância da mensagem deixada pela Campanha: Depoimento - Bebida e direção. “O efeito do álcool passa, a culpa fica para sempre”, conforme algumas falas a seguir:

“[...] tem pessoa que acha que saiu de uma festa alcoolizada e está bem para dirigir, isso é uma falta de pensamento.” (Sujeito 2).

Talvez com esta mensagem as pessoas se conscientizem e obedeçam às leis do nosso País.” (Sujeito 7).

[...] muitos ainda não respeitam os sinais de trânsito e ainda continuam sob o efeito de álcool dirigindo. Matam e se matam e, muitas vezes, vão até presos por isso e acabam também perdendo o veículo e multados por isso.” (Sujeito 13).

“[...] para mostrar as consequências de álcool e direção, pois as duas coisas não podem andar juntas.” (Sujeito 21).

As justificativas confirmam que os sujeitos da pesquisa avaliaram positivamente esse tipo de campanha educativa para o trânsito. Com base nas respostas provindas da pesquisa, é possível deduzir que o Vídeo mexeu com a sensibilidade da maioria dos estudantes da Educação de Jovens e Adultos participantes da pesquisa. Grande parte dos informantes demonstrou uma percepção sensível para a campanha educativa, percebendo as consequências das infrações de trânsito e manifestando sua indignação com a violência viária.
            Cabe, aqui, uma reflexão sobre a importância da percepção sensível, proporcionada pela campanha educativa em análise, e sua relação com o inteligível. Duarte Jr. esclarece-nos que “‘[...] o ‘sensível’ é o objeto próprio do conhecimento sensível, assim como o ‘inteligível’ é o objeto próprio do conhecimento intelectivo.” (DUARTE JR., 2001 p. 15). Mas qual a importância da integração do sensível com o inteligível para a segurança viária? Conforme Duarte Jr. (2001, p. 225), “[...] talvez a valorização do sensível e a busca de sua integração com o inteligível possa consistir num pequeno e primordial passo rumo a tempos menos brutais e permeados de maior equilíbrio entre as muitas formas de vida conhecidas”. Desta forma, quem sabe, a integração do sensível com o inteligível possibilite a reflexão e a aprendizagem sobre as maneiras coerentes de se comportar ao transitar nas vias.
No entanto, para que haja a integração entre o sensível e o inteligível, Maffesoli explica que: “É para dar conta disso que o intelectual deve saber encontrar um modus operandi que permita passar do domínio da abstração ao da imaginação e do sentimento ou, melhor ainda, de aliar o inteligível ao sensível”. (MAFFESOLI, 1998, p. 304).
Com base nessa citação de Maffesoli, podemos interpretar que a culpa será vista, também, como um indicador de aprendizagem se houver a integração do sensível com o inteligível. Assim sendo, para promover a segurança no trânsito, é importante considerar o modus operandi[3] no planejamento das campanhas educativas, a fim de proporcionar a sensibilidade por meio da conexão entre o sensível e o inteligível. Cabe, aqui, o argumento de Novaes sobre a culpa, sentimento em destaque na campanha em análise. “[...] a culpa também pode ser entendida como parte da experiência humana, como um guia. Nesse sentido é vista de forma positiva, funcionando como um indicador e como um meio de aprendizado”. (NOVAES, 2005, p. 61).

REFERÊNCIAS


BRASIL. Departamento Nacional de Trânsito / Ministério das Cidades.
Parada: Pacto Nacional pela Redução de Acidentes / campanhas. Depoimento - Bebida e direção. “O efeito do álcool passa, a culpa fica para sempre”. 2012a.  Disponível em: <http://www.paradapelavida.com.br/campanhas/bebida-e-direcao-o-efeito-do-alcool-passa-a-culpa-fica-para-sempre-dezembro-de-2011/>. Acesso em: 27 fev. 2013.

DUARTE JR., João Francisco. O sentido dos sentidos. Curitiba: Criar, 2001.

MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível. Petrópolis: Vozes, 1998.

NOVAES, Maria Helena (Org.). As gerações e lições de vida: aprender em tempo de viver. Rio de Janeiro: PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.

ONSV. Observatório Nacional de Segurança Viária. Aumenta o número de ocorrências indenizadas envolvendo crianças e adolescentes no trânsito em todo país. 2013. Disponível em: <http://www.onsv.org.br/ver/aumenta-o-numero-de-ocorrencias-indenizadas-envolvendo-criancas-e-adolescentes-no-transito-em-todo-pais>. Acesso em: 9 dez. 2013.


POMPEIA, João Augusto; SAPIENZA, Bilê Tatit. Na presença do Sentido - Uma aproximação fenomenológica a questões existenciais básicas. São Paulo: EDUC/Paulus, 2004.

SÓFOCLES. Rei Édipo. Tradução: J. B. de Mello e Souza. Versão e-Book. E-Book Brasil.com. Fonte digital. Digitalização livro em papel. Clássicos Jackson. Vol. XXII – 2005.

Irene Rios
Mestra em Educação, com a pesquisa: CAMPANHAS EDUCATIVAS PARA O TRÂNSITO: a percepção sensível de jovens e adultos; Especialista em Ambiente, Gestão e Segurança de Trânsito e em Metodologia de Ensino; Graduada em Letras Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa; Consultora e co-autora do projeto “Gincana Cultural de Trânsito”, vencedor do XII Prêmio Denatran de Educação no Trânsito - 2012 - na categoria "Educação no Trânsito - Projetos e Programas"; Presidente da Câmara Catarinense do Livro; Professora universitária de disciplinas na área de Educação para o Trânsito; Autora de artigos e livros sobre Educação para o Trânsito.




[2] Os sujeitos serão identificados por números, para preservar sua identidade.
[3] Modus operandi é uma expressão em latim que significa "modo de operação".

Um comentário:

  1. Ponto cego.
    Por que acidentes acontecem?
    Por que fechadas acontecem?
    Por que retrovisores são danificados ou destruídos?
    Por que violência, discussão, brigas de trânsito acontecem?
    Nada acontece por acaso.
    http://espelhoconvexo.com/

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