Escolhi a educação como profissão, em 1984, quando ingressei no curso de magistério. Leciono desde 1987. Iniciei com alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental, depois com crianças da Educação infantil: pré-escolar, maternal e berçário. Ao concluir o curso de Letras (Língua Portuguesa e literatura), há 16 anos, passei a lecionar a disciplina de Português nas séries finais do Ensino Fundamental, no Ensino Médio e na Educação de Jovens e Adultos.
Convivi com estudantes de várias idades e de várias classes sociais. Aprendi a lidar com alunos do interior e da cidade grande, estudantes pobres e “filhinhos de papai”, alunos tímidos e alunos hiperativos.
“Senti na pele” algumas das dificuldades do professor brasileiro, turmas numerosas, alunos indisciplinados, dificuldades de aprendizagem. Sei o quanto é sacrificante ter que deixar a família e trabalhar três períodos para garantir mais conforto aos filhos. Ter que abrir mão do lazer dos fins de semana para ficar preparando aula e corrigindo prova. Por isso entendo a aflição de muitos mestres, compreendo por que estão sempre sem tempo, por que resistem a assumir compromissos com projetos que possam lhe dar mais trabalho. Já passei por isso.
Dedico-me à educação para o trânsito desde 2003, estudando e ensinando. Entre livros, artigos, palestras, aulas e consultoria, busco alternativas de educar para o trânsito, objetivando não apenas a quantidade, mas também a qualidade na construção desse conhecimento.
Estou consciente do quanto precisamos nos mobilizar para conseguir sensibilizar as pessoas para essa causa. A luta por um espaço nas unidades de ensino é constante, pois sabemos da importância das escolas na formação de opinião e na mudança de atitude. A colaboração dos educadores à educação para o trânsito é imprescindível. Eles estão boa parte do tempo com as crianças e com os jovens e podem realizar um bom trabalho, com continuidade.
Afinal, é importante que a educação para o trânsito seja permanente, não basta dar aulas ou palestras esporádicas de boas condutas no trânsito. Por melhor que seja a atividade, mesmo que tenhamos conseguido um bom índice de aprendizagem, se não falarmos mais no assunto, surgirão outros interesses aos participantes e os conhecimentos adquiridos naquela aula ou palestra irão desaparecer.
A Educação para o Trânsito merece ser inserida como disciplina no currículo do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Não é necessário que seja uma disciplina específica de trânsito, o ideal é que em sua ementa conste também, Ética e cidadania, a educação de valores positivos, como: responsabilidade, respeito, saúde, auto-estima, valorização da vida e outros. Uma educação de qualidade precisa está contextualizada com esses valores.
No entanto a realidade é outra, não temos a disciplina de educação para o trânsito. Nossa legislação, através das Diretrizes Nacionais da Educação (portaria 147/2009 do Denatran), implantada para complementar o capítulo VI do Código de Trânsito Brasileiro, prevê que a educação para o trânsito seja inserida nas escolas usando a transversalidade.
Usar a transversalidade, conforme consta nos Parâmetros Curriculares Nacionais, significa trabalhar o tema de forma contínua, sistemática, abrangente e integrada com outras áreas convencionais, presentes no currículo escolar. (BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998, p. 26 a 29).
Trabalhar a Educação para o Trânsito nas escolas de maneira transversal implica em inseri-la nos conteúdos curriculares. Para ilustrar, cito o exemplo usado pelo saudoso Professor Renier Rozestraten, no livro “Psicopedagogia do Trânsito”: Em vez do professor usar a frase: Lili gosta muito do seu cachorrinho branco, pode-se dizer: Lili sempre atravessa na faixa de pedestre. (ROZESTRATEN, Reinier Johannes Antonius. Psicopedagogia do trânsito: princípios psicopedagógicos da educação transversal para o trânsito para professores do Ensino Fundamental. Campo Grande. Editora UCDB, 2004, p. 20).
A transversalidade, á princípio, parece ser uma solução viável. Porém, para que ela aconteça, o trânsito deve ser inserido em várias disciplinas e em vários conteúdos curriculares. Será que os professores irão elaborar atividades transversais de trânsito?
Após uma palestra que os sensibilize e os motive a isso, talvez consigamos que façam por um tempo. No entanto, em virtude no excesso de atividades que possuem, logo deixarão a educação para o trânsito de lado.
É necessário oferecer ferramentas aos educadores, disponibilizar materiais didáticos e capacitá-los. Mais do que isso, o trabalho do professor deve ser monitorado, pois se fizermos curso de capacitação e não acompanharmos o processo corremos o risco desse trabalho não ser realizado com continuidade.
Um modelo de projeto de educação para o trânsito desenvolvido com o acompanhamento de monitores é o realizado pelo DNIT (Departamento Nacional de Infra-Estrutura e Transportes), em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina, denominado “Percepção de Risco no Trânsito das Escolas Públicas Lindeiras às Rodovias Federais”. Os professores além de receber capacitação e material de apoio, são acompanhados e orientados por monitores.
Com relação aos matérias didáticos entregues aos mestres contendo sugestões de atividades transversais de trânsito, faço a seguinte reflexão: Supondo que o professor esteja desenvolvendo o conteúdo multiplicação e na seqüência do manual educativo de trânsito está uma atividade que envolve fração. Será que ele vai interromper o conteúdo que vinha trabalhando para explicar fração e manter a seqüência do manual?
Quando oferecemos ao professor material educativo organizado para ser usado em seqüência, estamos desejando que os conteúdos curriculares se adaptem ao tema trânsito. Essa é a melhor estratégia?
Coordeno o projeto “Educação Continuada de Trânsito”. Em 2008, foi implementado em seis escolas públicas, do município de Palhoça – SC. Envolveu 06 escolas, 16 professoras e 405 alunos de 3ª e 4ª série (4º e 5º ano) do Ensino Fundamental. Sua aplicação teve várias etapas: Iniciamos com a sensibilização da equipe de educadores da Secretaria Municipal de Educação. Depois realizamos uma palestra aos diretores das escolas municipais e em seguida aos professores das escolas contempladas.
Em continuidade às ações, foram realizados encontros individuais com as professoras, semanalmente, a fim de acompanhar, avaliar e orientar o trabalho de educação para o trânsito realizado por elas. Os encontros aconteciam nos horários em que estavam com intervalo de aula; em que os alunos estavam com os professores de educação física ou de artes. Nesses encontros fazíamos o planejamento verificando em quais disciplinas e conteúdos seria inserido o tema trânsito, a idéia era trabalhar o assunto pelo menos uma vez por semana. A partir da escolha dos conteúdos, eram desenvolvidas atividades transversais. No início, foram elaboradas por mim. No entanto, após três meses, as próprias professoras, sob minha orientação, criavam as atividades. Entre as ações rotineiras de nossos encontros destacam-se: Entrega de atividades transversais de trânsito adaptadas aos conteúdos indicados pelas professoras; Orientação sobre a aplicação dessas atividades; Avaliação do trabalho desenvolvido na semana anterior; Verificação dos conteúdos curriculares que estavam sendo trabalhados em sala de aula, para elaboração de outras atividades. As avaliações eram realizadas oralmente, através de relatório escrito desenvolvido pelas educadoras e por meio da análise das atividades respondidas pelos alunos.
A aplicação do projeto nessas unidades de ensino foi um sucesso. A recepção por parte da direção, das professoras e dos alunos foi excelente. Claro, é preciso ser realista, também houve algumas dificuldades, pelo menos quatro educadoras nem sempre seguiam minhas orientações. Porém, como desde o início, a proposta era trabalhar a partir da conscientização, sem obrigatoriedade, ouvia os motivos das professoras e oferecia uma sugestão para que elas recuperassem os conteúdos atrasados.
Por outro lado, havia três professoras que faziam além do que pedia. Mesmo no início do projeto, aplicavam as atividades que eu sugeria e desenvolviam outras. A quantidade de atividades produzidas durante o projeto é significante, um material rico que merece ser estudado. Na segunda etapa, quando tinham que elaborar as atividades, inserindo o trânsito nos conteúdos do currículo, houve uma grande doação por parte das educadoras. Sei o quanto esse trabalho requer tempo e disposição. Mas houve também uma grande demonstração de talento e criatividade. Cabe aqui destacar o desafio que a professora Elizandra teve que enfrentar quando se propôs a trabalhar o trânsito junto com o aparelho reprodutor. Você tem idéia de como fazer isso?
Ela conseguiu, solicitou que os alunos refletissem sobre os cuidados que uma gestante deve ter ao transitar e sobre as mudanças de comportamento que algumas mulheres costumam apresentar quando estão com tensão pré-menstrual. Sobre o segundo item apresentou a questão: “O que você pensa a respeito: “A mulher quando está próxima de menstruar, ela fica irritada, brava com qualquer coisa, etc, isso chama-se tensão pré-menstrual (TPM), caso ela esteja no trânsito como será seu comportamento? Por quê?” (Elizandra Maria da Rosa).
A partir da relação que a professora fez, além da segurança no trânsito, é possível trabalhar vários aspectos, como respeito, vida, saúde e outros.
Esse experimento proporcionou muitas reflexões. Entre elas, enfatizo a necessidade de acompanhamento das atividades e a adaptação da educação para o trânsito aos conteúdos curriculares. É importante verificar o conteúdo disciplinar que o educador está, ou já desenvolveu com os alunos para então fornecer atividades relacionadas ao trânsito e a esse conteúdo, com acompanhamento. Dessa forma, o trânsito como tema transversal nas escolas funciona.
Essas são algumas reflexões, referentes à transversalidade do tema trânsito nas escolas, que compartilho com os que se interessam pelo assunto. Minha busca por soluções à segurança e à educação para o trânsito continua. Em breve novas idéias e reflexões sobre a temática.
São José, 07 de novembro de 2009.
IRENE RIOS DA SILVA, Especialista em Meio Ambiente, Gestão e Segurança de Trânsito e em Metodologia de Ensino; Professora de Educação no Trânsito e de Campanhas Educativas de Trânsito na UNIVALI – Universidade do Vale do Itajaí. Autora de Artigos e livros sobre Educação para o Trânsito.