Uma conversa com um executivo me levou a refletir sobre segurança. E a tentar entender como conseguiremos chegar a ela no trânsito. Se quisermos…
Por Gustavo Henrique Ruffo
Aquela foi a primeira vez em que estive na Califórnia, EUA. E, até agora, a única. O foco naquele evento, em agosto de 2013, era descobrir novidades sobre a Nissan. E vale dizer que poucas empresas já tiveram uma ideia tão boa quanto a da marca japonesa: reunir, em um mesmo lugar, todos os carros que a empresa fabrica no mundo, com todos os executivos principais, para que os jornalistas pudessem ter contato com tudo isso. Aluguei o chefe de design mundial da empresa, Shiro Nakamura, a respeito do novo SUV compacto e dos planos da marca para o Brasil. Mas uma das conversas, que não necessariamente interessava ao Brasil, no curto prazo, foi mais proveitosa do que eu poderia esperar. Falei com Vincent Cobee, chefe da Datsun, que apresentou no evento o modelo Go, um March bem depenado que ainda não tinha sido posto à venda na Índia.
Mesmo que o retorno da marca merecesse comemoração dos americanos, que sentem saudades do 240Z, o Go despertou mais curiosidade que interesse. Os bancos dianteiros são integrados um ao outro, como em picapes antigas, têm encostos fixos de cabeça, o câmbio fica no console central, como em algumas minivans, e não há nada de refino. Não existe cobertura de porta-malas, o que deixa as malas expostas, a parte interna do capô não tem pintura (como o Chevrolet Agile, aliás) e ele não tem ABS ou airbags nem na versão mais cara. Nem como opcionais.
Na época, estávamos à beira de tornar os equipamentos obrigatórios no Brasil e eu quis saber por que a nova velha marca japonesa reestrearia sem a oferta destes itens de segurança. Houve um jantar da Infiniti e aproveitei para me sentar perto do executivo e perguntar sobre isso. “Me procura amanhã, no estande da Datsun, que eu te explico com o carro do lado”, disse Cobee. Anotei a promessa e cobrei no dia seguinte.
Conforme o prometido, Cobee me mostrou os grandes vidros retos do Datsun Go e começou sua explicação.
Conforme o prometido, Cobee me mostrou os grandes vidros retos do Datsun Go e começou sua explicação.
- Você sabe qual é o país que mais mata no trânsito?, ele perguntou.
Imaginei que o título fosse vergonhosamente nosso.
- Sei que no Brasil morrem cerca de 50 mil pessoas por ano, respondi.
- Sim, morre muita gente por lá, mas o país que mais mata é a China, com 300 mil mortes por ano. O segundo é a Índia, com 200 mil mortes no mesmo período. Relativamente à população, pode ser um número menor do que no Brasil, mas, em números absolutos, é preocupante. Aí te faço a segunda pergunta: sabe o que mais mata? – disse Cobee, completando logo em seguida: – Dizem que são fatores humanos, mas posso te falar do que mata na Índia: má visibilidade e freios ruins. Foram as duas coisas que resolvemos com o Datsun Go. Não adiantaria nada equipar o carro com ABS e airbags porque a maior parte dos carros vendidos na Índia custa até US$ 5.000 dólares. Se tivesse esses equipamentos, o Go sairia dessa faixa e não ajudaria a enfrentar o problema.
- Carro que não vende é carro que não protege…, respondi.
- Exatamente! E o nosso, sendo acessível e melhor do que a concorrência em questões vitais, pode ajudar bastante a proteger os passageiros. Até chegarmos a um patamar em que as pessoas possam comprar carros mais caros, com mais tecnologia de segurança. – finalizou o executivo.
Saí daquela conversa com a sensação de que o executivo, habilidoso na arte de convencer clientes, funcionários e superiores, tinha me passado uma conversa daquelas, evitando admitir que o carro deixava muito a desejar. Mas, do ponto de vista econômico, ele tinha razão. De que adianta ter um carro repleto de recursos se eles são vistos como luxo ou, pior, se tiram do consumidor a chance de comprá-lo?
Quando fui ao evento, eu trabalhava em um jornal e propus uma reportagem sobre como a segurança pode ter aspectos relativos que deviam ser levados em consideração, mas a ideia não agradou a chefia. Guardei o plano na gaveta e esperei a oportunidade de colocá-lo em prática, o que o Notícias Automotivas acabou me permitindo fazer agora, depois de mais um bocado de apuração. Foram quatro meses de pesquisa, dezenas de e-mails, downloads de documentos e estudos, muitos pedidos de informação não atendidos e aqueles que frutificaram e renderam algumas horas de entrevistas. Delas, você poderá ler aqui as partes mais relevantes. E, com sorte, se sensibilizar adequadamente diante de um problema que, no Brasil, é menosprezado. Como quase todos os que enfrentamos.
O começo
Para poder falar dessa relatividade da segurança, primeiro era preciso apurar as causas. Fui atrás da principal entidade relacionada ao assunto, a Organização Mundial da Saúde. Trânsito, acredite, é tratado como uma questão de saúde pública, considerando o número de mortes e lesões que causa a cada ano.
Segundo a OMS, somos o quarto país que mais mata em números absolutos, com 43.869 mortes só em 2010, o dado mais recente de que a entidade dispõe. É mais ou menos o que a guerra no Afeganistão já matou desde 2001. Ficamos atrás de China (275.983), Índia (231.027) e Nigéria (53.339). Em números relativos (número de mortos a cada 100.000 habitantes), temos a alta taxa de 22,5 mortos (a mais alta, sem distorções, é a da República Dominicana, com 41,7 mortos). Com isso, superamos China e Índia.
Pedi à assessoria da OMS as principais causas de mortes de trânsito no mundo. Seriam as estradas? Os veículos? A entidade não se comprometeu. Segundo ela, há variáveis demais a considerar etc.
De todo modo, e por meios indiretos, como o estudo “The Global Status Report on Road Safety”, ou Relatório do Estado Global de Segurança Viária, ela aponta que o principal fator de acidentes é humano, ou seja, não se deve nem ao carro nem às vias. Se deve à pecinha entre o banco e o volante. E os cinco fatores-chave em mortes no trânsito são os seguintes:
De todo modo, e por meios indiretos, como o estudo “The Global Status Report on Road Safety”, ou Relatório do Estado Global de Segurança Viária, ela aponta que o principal fator de acidentes é humano, ou seja, não se deve nem ao carro nem às vias. Se deve à pecinha entre o banco e o volante. E os cinco fatores-chave em mortes no trânsito são os seguintes:
• beber e dirigir;
• exagerar na velocidade;
• não usar cinto de segurança;
• não usar capacete;
• não usar cadeirinhas infantis.
• exagerar na velocidade;
• não usar cinto de segurança;
• não usar capacete;
• não usar cadeirinhas infantis.
Resumindo, são todas atitudes diretamente ligadas ao motorista e aos passageiros. Defeitos no carro matam, sim. Estradas ruins também influenciam, mas, se fosse preciso definir o grande culpado por estatísticas tão ruins, ele seria o motorista. Cuidar do fator humano nesta equação nefasta também é o que, a curto prazo, pode gerar mais resultados. Mas a pesquisa em torno do tema me levou a perceber que o problema, no Brasil, vai muito além disso.
Não foi acidente
Pelo menos uma das maiores causas de mortes no trânsito, beber e dirigir, tem no Brasil um movimento de combate muito atuante. Trata-se do “Não Foi Acidente”, iniciado pelo palestrante Rafael Baltresca e pelo publicitário Ava Gambel. Baltresca perdeu a mãe e a irmã em um acidente em 17 de setembro de 2011. Gambel perdeu um ente querido em circunstâncias semelhantes. Juntos, eles resolveram transformar o luto em luta por mais rigor na punição de motoristas bêbados, hoje enquadrados como homicidas culposos, sem a intenção de matar.
O movimento conta com o apoio de outros afetados por tragédias, como o Viva Vitão, em homenagem a Vitor Gurman, atropelado em julho de 2011 pela nutricionista Gabriella Guerrero, e por Christiane Yared, mãe de Gilmar Rafael Souza Yared, morto em um acidente de trânsito em 2009, causado pelo ex-deputado Luiz Fernando Carli Filho. Em ambos os casos, a embriaguez teria sido a causa dos acidentes.
Por ora, ele se empenha em coletar assinaturas para propor um projeto de lei de iniciativa popular. O objetivo é chegar a 1 milhão e 300 mil assinaturas. Até o momento, o “Não Foi Acidente” reuniu 997.491 assinaturas. “Fizemos uma petição pública, mas antes mesmo de chegar ao número de assinaturas necessário para a apresentação do mesmo, ele foi levado ao Congresso pela deputada federal Keiko Ota e recebeu o número 5568/2013. Em março de 2014, houve a audiência pública para análise do mesmo. Estamos aguardando que o deputado federal Hugo Leal faça o substitutivo, alterando o que for necessário. Esperamos que a aprovação do projeto de lei aconteça ainda antes das eleições”, diz Gambel.
Sim, o projeto já está no Congresso, mas o “Não Foi Acidente” ainda quer apresentar as assinaturas como forma de mostrar apoio popular à ideia. E dar aos congressistas a certeza de que ela se origina de um anseio social.
O desafio será grande. Além de garantir que casos de acidentes fatais envolvendo embriaguez sejam tratados com o rigor necessário, ou seja, como homicídio doloso, com a intenção de matar, também é preciso encontrar meios de comprovar esse tipo de intoxicação de modo eficaz. O direito penal brasileiro tem por princípio que “ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo”, o que permite a um acusado se negar a fazer o exame do bafômetro, por exemplo. “O argumento é baseado no Pacto de São José da Costa Rica, da época da ditadura militar, que tem outros países como signatários. Interessante ressaltar que essa brecha na lei só acontece no Brasil. Precisa dizer mais alguma coisa?”, diz Gambel.
O desafio será grande. Além de garantir que casos de acidentes fatais envolvendo embriaguez sejam tratados com o rigor necessário, ou seja, como homicídio doloso, com a intenção de matar, também é preciso encontrar meios de comprovar esse tipo de intoxicação de modo eficaz. O direito penal brasileiro tem por princípio que “ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo”, o que permite a um acusado se negar a fazer o exame do bafômetro, por exemplo. “O argumento é baseado no Pacto de São José da Costa Rica, da época da ditadura militar, que tem outros países como signatários. Interessante ressaltar que essa brecha na lei só acontece no Brasil. Precisa dizer mais alguma coisa?”, diz Gambel.
Além do projeto de lei, o “Não Foi Acidente” tem outras preocupações, como trabalhos de conscientização. “Ainda em 2011, criamos um memorial para mostrar que os números têm rostos e tinham sonhos, também. Temos desde 2012 um grupo de apoio à pessoa em luto. Ele é presencial, em São Paulo, e também virtual, atendendo pessoas em todo o Brasil. Nosso trabalho está na luta por uma lei mais célere e eficiente, bem como em trabalhos de conscientização, como palestras e o apoio ao familiar que vivenciou a perda de um ente querido”, diz Rosmary Mariano, pedagoga, terapeuta ericksoniana especializada em situações de luto e uma das coordenadoras do movimento.
Na página do Facebook do movimento, há fiscalização contra gente que avisa sobre blitze da lei seca, avisos sobre acidentes causados por motoristas bêbados e, recentemente, uma campanha para incluir em cardápios, materiais de divulgação e em locais que vendem bebidas alcoólicas os dizeres “Se beber, não dirija”. Algo que as propagandas de bebidas já fazem, mas que muita gente se recusa a seguir. E esse não é o único problema que o trânsito brasileiro tem a enfrentar.
O que há por corrigir
Segurança é uma palavra que a Volvo conectou intimamente a seus produtos. A marca nasceu com essa preocupação, vale dizer, e mesmo depois de ter vendido sua divisão de automóveis, continuou identificada com o tema. No Brasil, o Grupo Volvo desenvolve o Programa Volvo de Segurança no Trânsito (PVST)desde 1987. E a edição mais recente de seu “Atlas da Acidentalidade no Transporte Brasileiro”, referente ao período entre 2008 e 2012, mostra que o número de acidentes cresceu de 141.120 em 2008 para 192.308 em 2011. Só em estradas federais.
O número de mortos por estes acidentes pulou respectivamente de 6.948 para 8.670, ou seja, apenas uma parcela das quase 44 mil mortes registradas em 2010. Ainda que seja só uma amostra do que acontece no país, o estudo e as pessoas que trabalharam nele trazem revelações interessantes.
A primeira, e você deve ter notado que só há dados da rede rodoviária federal, é que o Brasil não sabe fazer estatística. “Ao desenvolver o Atlas da Acidentalidade no Transporte Brasileiro, o objetivo do PVST foi mostrar o tamanho do problema no país. Sabíamos ser uma tarefa muito difícil pela falta de estatísticas confiáveis. Depois de fazer algumas tentativas de levantar dados em algumas áreas, optamos por começar onde já havia informações confiáveis: o banco de dados da Polícia Rodoviária Federal, que reformulou seu sistema de coleta de dados há alguns anos e contempla dados coletados nacionalmente, dentro de uma mesma metodologia”, diz João Pedro Corrêa, consultor do Programa Volvo de Segurança no Trânsito (PVST).
“Assim, enquanto disponibilizamos o primeiro atlas, temos chances de estudar como equacionar o problema da falta de dados para cobrir outras áreas do Brasil. Esperamos que, com a participação de parceiros, possamos continuar produzindo novos documentos, sempre com o objetivo de responder à inquietante pergunta: ‘Qual é o tamanho do problema da acidentalidade no transporte brasileiro?’. Queremo contribuir, assim, para informar, alertar a sociedade e o segmento de transporte sobre os pontos e rodovias que exigem um maior gerenciamento de riscos”, completa ele.
Com essa falta de dados confiáveis, fica difícil fazer um diagnóstico e atacar os problemas. Como os prejuízos que os acidentes causam. “Apesar da recomendação da Organização Mundial de Saúde para que haja acompanhamento dos acidentados até 30 dias após o acidente, este trabalho é feito de forma muito irregular no Brasil. Poucas cidades efetivamente buscaram se aparelhar para realizar esta tarefa de forma confiável. Assim, o que se vê nas estatísticas nacionais é uma mistura de dados que torna seus números finais de difícil confiabilidade. Na verdade, o Brasil não tem cultura de estatísticas, isto nunca foi um ponto forte das nossas administrações e no trânsito não é diferente. Um dos objetivos do Atlas da Acidentalidade no Transporte é justamente quebrar este paradigma da falta de estatísticas confiáveis e procurar mostrar que, se juntarmos forças, conseguiremos superar isso, mas sabemos que ainda falta muito”, diz Corrêa.
Além de não sabermos o que atacar, ainda padecemos de um sério problema cultural, segundo o consultor. “É preciso ressaltar, antes de mais nada, que, não sendo um valor, segurança não é prioridade no Brasil, seja para o governo, seja para a própria sociedade. Somos uma nação sem cultura de segurança, sem cultura de segurança no trânsito, com um nível de educação básica bem aquém do desejado, o que leva o brasileiro a ter comportamento inseguro não apenas no trânsito, mas também no trabalho. Nossos índices de acidentes não condizem com os de um país que possui a sétima economia do mundo.”
Mas fica um pouco pior. “Junte a este quadro o de não contarmos com um sistema de trânsito adequadamente aparelhado para gerenciar um setor de tamanha importância. Assim, faz muita falta um Plano Nacional de Segurança no Trânsito e, dentro dele, um Programa Nacional de Redução de Acidentes e de Fatalidades. Temos um precariíssimo sistema de fiscalização de trânsito, sem falar na falta de infraestrutura viária para permitir uma mobilidade segura. Como se isto não bastasse, contamos com um modesto sistema de formação de motoristas que, apesar de ter melhorado com a transformação das autoescolas em centros de formação de condutores (CFCs), está longe de cumprir seu verdadeiro papel na qualificação de motoristas. Tão desanimador quanto este quadro é a falta de perspectiva de que poderemos contar com um sistema forte de trânsito num horizonte imediato”, diz Corrêa, que se mantém otimista. “A esperança é que, com a chegada do novo governo, que assume no próximo ano, venha também uma reformulação do sistema de trânsito e que nela estejam embutidas as medidas para conter a violência e a matança indiscriminada nas nossas ruas e estradas.”
Formação
Se fôssemos falar de tudo que precisa ser corrigido no sistema de trânsito brasileiro, este texto ganharia vocação de livro. Fiquemos, portanto, em um dos aspectos mais básicos citados pelo consultor da Volvo, e um dos que talvez mais fizessem diferença, se enfrentado a contento: a formação que os motoristas recebem. Na Nigéria, qualquer um recebia a habilitação apenas pagando uma taxa. Não por acaso, é um dos países que mais matam no trânsito. Por outro lado, o exame finlandês é considerado o mais severo do planeta. E o número de mortes por lá é de 5,1 por 100 mil. Ou 272 mortes em 2010. É o que as estradas brasileiras matam em um feriado prolongado.
E o que o processo de habilitação finlandês tem de diferente? Para começar, ele realmente ensina a dirigir. As provas incluem direção à noite, em estrada, sob neve e em outras situações climáticas desfavoráveis, controle de derrapagens em skid pad (sem derrubar nenhum cone), frenagens de emergência e por aí afora. Não por acaso os maiores pilotos de rali do mundo são finlandeses (Sebastian Loeb é uma honrosa exceção).
O treinamento pode começar quando o motorista faz 17 anos e seis meses, mas o postulante a motorista só consegue obter uma habilitação sem restrições ao fazer 20. E as restrições incluem a proibição de dirigir em estrada, de dirigir à noite e outras situações de risco. Só pega a carteira sem restrições quem tiver pelo menos 43 horas de treinamento teórico e prático. Os testes do Reino Unido e da Alemanha são igualmente severos.
Formação correta de motoristas é preocupação mesmo para países com índices menores de mortes no trânsito, como os EUA. A revista Road and Track fez em julho do ano passado uma reportagem exemplar sobre o problema (se quiser lê-la, em inglês, clique aqui). O que mais chama a atenção na matéria é este trecho: “Em 2011, 3.291 adolescentes americanos morreram em acidentes de carro. Batidas são a causa de mais de um terço das mortes de jovens, ultrapassando em muito os mortos por armas, drogas, câncer e homicídio. Motoristas entre 16 e 19 têm uma taxa de acidentes fatais mais de três vezes mais alta do que aqueles entre 30 e 69. Se fosse uma doença, declararíamos uma epidemia. Se fossem crianças mortas por um governo estrangeiro, declararíamos guerra. Mas como são mortes espaçadas, cerca de nove por dia, ninguém liga o suficiente pra fazer algo a respeito. Nem o governo, nem as companhias de seguros nem os pais”. Triste, né? E, no Brasil, estamos muito pior.
Por aqui, o teste de habilitação exige uma volta no quarteirão, em primeira e segunda marcha, uma baliza e ponto final. Recentemente, o colunista Geraldo Tite Simões escreveu em sua coluna no WebMotors o seguinte: “Não consigo explicar a origem deste comportamento, que pode ser desde a já extensamente debatida queda na qualidade do ser humano em sociedade, mas passa também pelo baixo nível de formação dos neo-motociclistas. O CFC (moto-escola), pura e simplesmente como é feito hoje, só funciona para habilitar um futuro motociclista, mas não tem caráter formador de um cidadão motorizado minimamente sociável. É mais ou menos como querer formar um engenheiro dando-lhe apenas a tabuada como material didático.”
Isso quando a pessoa não “compra a carteira”, prática conhecida, denunciada de modo cabal pela revista Quatro Rodas em março de 1972, quando a publicação comprou uma carteira de motorista para um cego. Infelizmente, essa prática criminosa é estimulada até hoje por uma suposta dificuldade em passar nos exames. “No seu teste, o instrutor disse que o cone que você atropelou poderia ser uma pessoa? Disse que se você passar em um sinal vermelho você pode matar uma família? Nada disso é mencionado nos exames. Você foi adestrado pra dirigir. Ninguém te fala se você vai matar alguém. Só se você vai tomar multa ou não. Nosso problema não é veicular nem viário. É humano: 70% dos acidentes no país acontecem de dia, em estradas retas e secas, sem chuva”, disse José Aurélio Ramalho, diretor-presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária.
De olho nisso, o ONSV fez um estudo que será divulgado até o final deste mês. Pautado na legislação de trânsito atual, ele propõe melhorar os centros de formação de condutores, os CFC. Tirar a carteira de motorista, pela proposta, exigirá três passos, quase como o processo acadêmico: haverá a teoria, um laboratório, para aplicação da parte teórica, e aulas práticas.
Segundo o ONSV, nas aulas teóricas o aluno deverá receber instruções sobre velocidade, riscos, controle do veículo em situações adversas, como chuva, noite, neblina, pista escorregadia etc. e legislação. Atualmente, as aulas teóricas se limitam a decorar o significado das placas, para não ser reprovado na prova teórica.
Nos laboratórios, o estudante usará um simulador de direção veicular. Será diferente do que foi apresentado recentemente, já reprovado por diversas entidades sérias, além de haver suspeitas de corrupção na licitação e na exigência do equipamento. “O conteúdo dos simuladores está muito ruim. O cara sai da estrada e vai parar no alto de um prédio de três andares… Sua exigência já foi revogada, mas, no último dia 5 de junho, a resolução 493/14 do Contran (Conselho Nacional de Trânsito) trouxe os simuladores de volta, dizendo que eles podem substituir algumas aulas práticas, reduzindo o tempo exigido para elas. O Observatório é contrário a isso”, diz Ramalho.
As aulas práticas, que deveriam ter pelo menos o dobro da carga horária das teóricas, segundo o diretor do ONSV, serão, como o próprio nome diz, o espaço para o candidato a motorista vivenciar as situações reais e ganhar confiança no manejo do veículo. Algo que não se pode dizer das aulas atuais nem da obtenção da carteira de motorista. São muitos os que não se sentem preparados para dirigir após pegar a CNH e que acabam recorrendo a cursos especiais para perder o medo ou apenas para se certificar de que realmente podem conduzir um automóvel.
Essa nova estrutura para obter a carteira de motorista também não seria como a atual. A proposta do ONSV é que exista um “progressão lógica, contínua e evolutiva” entre todas as fases. “Consideramos este estudo como a primeira ação, de muitas que deverão ocorrer, para poder estabelecer um processo educativo de formação de condutores. Um que efetivamente contribua, no conjunto de outras ações que devem ser assumidas pelo governo e pela sociedade brasileira, para a redução dos óbitos e sequelas por acidentes de trânsito no Brasil. Este processo deve ser construído a muitas mãos. Para que efetivamente resulte em transformação, interesses econômicos, políticos e corporativos deverão ser superados por um bem maior: a defesa da vida”, diz Ramalho.
Preocupação zero
Isso levaria qualquer um a questionar como um país, qualquer um, se permite ser tão negligente com algo tão fundamental. Afinal de contas, estamos falando “apenas” do que se exige para permitir operar máquinas de uma tonelada ou mais a velocidades legais de até 120 km/h… Dá para medir as prioridades governamentais brasileiras com um teste rápido. Se o governo obrigou os carros brasileros a ter airbags dianteiros e ABS para torná-los mais seguros, pergunto: você sabe usar ABS? Sabe que o pedal trepida quando ele é acionado? Sabe que o airbag pode ser uma séria ameaça a crianças pequenas, em alguns casos? Se tirou a carteira de motorista entre 2013 e 2014, recebeu aulas práticas para usar o ABS corretamente?
Comento aqui mais pela oportunidade de explicar do que por alguma vã pretensão de instruir, mas aí vai: freio antitravamento, ou ABS, é aquele que não trava em condições de pouca aderência. Experimente frear forte na chuva, ou com piso escorregadio: as rodas vão travar. Você poderá virar o volante para qualquer lado que continuará andando em linha reta. O ABS mantém o controle direcional do veículo, mas é preciso que o motorista pise firme no freio, mantenha o pé lá embaixo e esterce normalmente. É basicamente para isso que ele serve.
Nos EUA, até hoje, há programas que ensinam o funcionamento do ABS com três S: STOP, freie forte, STOMP, mantenha o pé no pedal, mesmo que ele vibre, e STEER, esterce. Quando se viu algo parecido aqui no país? O airbag do passageiro dianteiro, se houver uma criança pequena naquele banco, pode provocar ferimentos sérios nela, por isso tem a possibilidade de ser desligado. Alguma campanha de esclarecimento? Qualquer coisa? Não adianta ter o equipamento sem saber usá-lo corretamente. Pode ser até pior.
“Nem haveria a necessidade de estudos para estabelecer uma relação entre motoristas qualificados e acidentes de trânsito. Se não temos um bom sistema, se não temos educação nem cultura de trânsito e se temos um setor de formação de condutores que deixa muito a desejar, não surpreende que nossos índices de acidentes estejam nos níveis atuais. O que espera a comunidade do trânsito é que seja criado um novo sistema de formação de condutores que, a exemplo do que existe em países desenvolvidos, produza motoristas com qualificação à altura do atual estágio de desenvolvimento do país”, diz Corrêa.
Mas não só. O Programa Volvo de Segurança no Trânsito (PVST) também propõe reformas para reverter os números vergonhosos que o Brasil exibe em segurança viária. “Recomendamos: 1 – um novo Sistema Nacional de Trânsito, estabelecendo novas funções para os órgãos hoje existentes; 2 – um Plano Nacional de Segurança de Trânsito, que dê ao setor a prioridade que merece; 3 – um Programa Nacional de Redução do número e da gravidade dos acidentes de trânsito”, diz o consultor da Volvo, para explicar pouco adiante.
“Um bom sistema gerencial do trânsito brasileiro contemplará certamente a necessidade de se criar uma cultura de segurança, uma revisão total do que chamamos hoje de educação para o trânsito, um plano nacional de melhoria da infraestrutura viária do país e um fortalecimento do aparelho de fiscalização do trânsito, sem falar na absoluta necessidade de melhoria na qualidade da formação de motoristas. Isto tudo pressupõe uma qualificação muito superior à atual também dos nossos gestores de trânsito, em todos os níveis. Não é pouca coisa, mas, com um bom plano, daremos conta do recado. Temos conhecimento e recursos para montar e desenvolver um plano de ação de médio e longo prazos. É preciso decisão e coragem política para começar”, finaliza.
E as demais causas?
Já ouvi diversas pessoas reclamando de recalls no Brasil, dizendo que eles são muito frequentes, como se fosse ruim um fabricante perceber um risco à segurança e se dispor a saná-lo. Também já ouvi gente reclamar da falta de um órgão com tanta influência quando o NHTSA americano, que investiga falhas e ordena recalls quando os fabricantes não o convocam voluntariamente. Mas, em um país em que não há dados corretos sobre batidas, mortos e feridos, em que o motorista tem uma formação tão deficiente e no qual 70% dos acidentes são em pista reta, seca e de dia, como se pode mensurar corretamente a proporção de culpados pelos acidentes?
Jaílton de Jesus Silva, um açougueiro de Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo, comprou feliz da vida seu SUV Chevrolet Bonanza em 1992. Depois de sofrer quatro acidentes, sempre com o travamento dos freios traseiros, Silva investigou o problema e descobriu que ele era crônico. Afetava diversas unidades do Bonanza. Foi quando ele tomou conhecimento do “recall branco”, uma notificação interna de defeito que as montadoras usam para trocar peças apenas dos carros de quem reclama do problema. Sem avisar aos donos dos carros.
Foi o que o motivou a fundar a Associação Nacional das Vítimas de Montadoras e Concessionárias Automobilísticas (Anvemca), que já jogou luz sobre uma série de acidentes e casos polêmicos envolvendo defeitos mecânicos. É uma atitude pioneira e louvável, mas que ainda carece de organização. Sozinho, Silva vem reunindo milhares de documentos que comprovam os recalls brancos e outros problemas, mas os documentos não foram reunidos por defeito, por montadora ou por fornecedora. Não há estatísticas de acidentes com os veículos envolvidos nos defeitos relatados. Não há nenhuma esquematização de dados. E Silva cuida de tudo sozinho.
A iniciativa de encontrar os culpados por acidentes causados por defeitos mecânicos, com isso, acaba rendendo menos frutos do que poderia. E ainda tem de lutar com um trânsito selvagem, que quase sempre pode creditar os acidentes a imperícia, imprudência ou negligência do motorista. E se nenhuma delas for a causa? Não dá para saber.
Pensemos nos acidentes causados por vias esburacadas, mal conservadas ou mesmo com defeitos de projeto. Anos atrás, mais precisamente em 1970, o professor Ardevan Machado, engenheiro e especialista em Geometria Descritiva, começou uma batalha pessoal contra as “curvas sem sobrelevação” que só terminou em 2003, quando Machado morreu, aos 77 anos. As tais curvas são aquelas que jogam o carro para fora, também chamadas pelo professor de “curvas assassinas”.
Enquanto esteve por aqui, Machado conseguiu alterar pelo menos 50 delas. Sabe-se lá quantas vidas ele conseguiu salvar com isso. Ao morrer, levou consigo a batalha por vias mais seguras de transitar. Se quiser conhecer o trabalho deste grande homem, clique aqui. E não sabemos, até hoje, quantos acidentes são causados por causa da condição do asfalto. Pelo visto, tão cedo também não saberemos.
Questionado sobre isso, Corrêa disse: “Os problemas gerados pelas vias mal conservadas afetam, claro, a segurança, mas afetam ainda mais a economia e o próprio crescimento do transporte nacional. O problema dos veículos velhos não está na idade, mas no seu estado de manutenção, que, aí, sim, pode levar a provocar muitos acidentes. É aqui que sentimos a imensa falta da inspeção veicular, preconizada no Código de Trânsito Brasileiro de 1998 e nunca implementada. Grande parte dos acidentes em que ‘o caminhão perdeu o freio e bateu noutro(s) veículo(s)’ poderia ser evitada se o país contasse com um sistema de inspeção anual da frota, como acontece em muitos países. Resumo: com vias bem conservadas e frota bem mantida, nosso trânsito teria um fluxo e uma segurança incomparavelmente melhores, trazendo benefícios para o bem-estar e para a economia dos brasileiros.”
No fim, temos gente preocupada com a segurança, mas são profetas no deserto, como se vê nos casos de Jaílton de Jesus Silva e Ardevan Machado. Temos entidades preocupadas com a questão, como o ONSV e o PSVT, mas evoluímos pouco. A maioria não liga. Ou diz que liga, mas só para jogar para a torcida.
Talvez pelo nosso perfil tão brasileiro de ser: reclamamos de governo, de trânsito, de vizinho. Não sem razão: tudo está realmente muito difícil. Mas o mesmo cara que reclama do lixo é o que abre a janela do carro pra jogar casca de mexerica. O que reclama do político é o que vota no que “rouba, mas faz” e dá caixinha pro guarda pra não ser multado. O que reclama do trânsito é o que sempre dá uma de espertão, para em vaga de deficiente, de idoso, anda em acostamento e ainda corta a fila.
Quem reclama da insegurança no trânsito provavelmente faz ultrapassagem proibida, foto do velocímetro “dando VDO” pra colocar no Facebook e carrega os filhos no colo, no banco da frente. Ou só reclama da insegurança nas ruas, no emprego, nos hospitais, nas escolas. Tem um problema sério em assumir responsabilidade e em estabelecer relações de causa e efeito. Segurança, como me disse Cobee, é realmente algo relativo: relativo a quem se preocupa com ela de verdade. E eu concluo, com tristeza: inseguro é ser brasileiro, seja em que campo for.
Fonte: Notícias Automotivas
Disponível em: http://www.onsv.org.br/ver/especial:-a-seguranca-do-transito-esta-em-suas-maos - Acesso em 29/07/2014
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