Uma cerimônia foi realizada no dia 18 de junho no Palácio do Planalto para celebrar a concessão do status de "periculosidade” ao trabalho de entrega de mercadorias e documentos, de transporte de passageiros e de serviço comunitário de rua usando motocicletas. A Presidente Dilma apareceu rindo e usando capacete e colete de motociclista, afirmou que "é inconcebível hoje em dia uma cidade sem motoboys”, expressou sua grande preocupação com a segurança dos motociclistas e arriscou dar sugestões técnicas para resolver o problema. Foi mais um episódio constrangedor no processo trágico da liberação e do incentivo irresponsável ao uso deste veículo no Brasil.
O processo de massificação da motocicleta no Brasil teve dois atores centrais – o governo federal e a indústria. Com subsídios dados pelo governo federal à indústria para reduzir o preço do veículo e oferta de facilidades para a compra do veículo em grande número de prestações, milhões de motocicletas foram inseridas no trânsito, sem a comunicação dos grandes riscos associados ao seu uso, sem a preparação adequada dos seus condutores e dos demais usuários das vias (que em sua maioria não conheciam este veículo), sem a adaptação da sinalização das vias, sem o estudo de pontos críticos e perigosos, sem a definição de onde a motocicleta poderia circular com alguma segurança e sem os cuidados necessários com a presença de veículos de grande porte que circulam junto às motocicletas. Foi tudo feito às pressas, em nome da geração de empregos, do "progresso” e da "libertação dos pobres”.
O fato de que entre 2000 e 2012 quase um milhão de pessoas tenha sido atingido tragicamente no processo, sendo 178 mil pela morte e 781 mil pela aquisição de invalidez permanente, só sensibilizou os estudiosos de segurança de trânsito no Brasil e o setor de saúde, que começou a pagar enormes e crescentes contas hospitalares em todo o país. Frente à denúncia da extrema gravidade do fenômeno – nunca passamos por um processo social tão violento em tão pouco tempo – os agentes públicos e privados ligados ao tema reagiram com prepotência, descaso e negligência.
A indústria de motocicletas, em meio às comemorações pelo enorme crescimento das vendas, insistiu no bordão "nós vendemos um produto seguro”. Com isto ela aderiu à visão tecnocrática e fria de que a motocicleta fica em pé quando conduzida, consegue fazer curvas quando o condutor deseja e pára quando os freios são acionados. A motocicleta, por sua natureza de veículo, obrigatoriamente usa as vias públicas, dividindo espaço com pedestres, bicicletas, automóveis e com ônibus e caminhões cujos condutores muitas vezes não conseguem ver quando uma motocicleta se aproxima do seu veículo. Que conceito absurdo de segurança é este, que ignora o contexto no qual o veículo circula? Que tipo de veículo "seguro” é este, que não oferece nenhuma proteção aos seus ocupantes em caso de choques ou colisões? É, na realidade, uma falácia óbvia, inteligentemente trabalhada pela comunicação. É como liberar o trânsito de bicicletas em vias expressas e depois culpar os ciclistas por suas mortes, pois eles estão usando um veículo "seguro”. No fundo, a postura da indústria é de "lavar as mãos” e jogar no poder público, no condutor da moto e nos demais usuários do trânsito qualquer responsabilidade pelos acidentes.
Os motociclistas reagiram afirmando ou que as críticas eram injustificadas – "a motocicleta não é perigosa”- ou que as críticas eram preconceituosas e procuravam desqualificar o veículo e os seus usuários. Houve vários comentários a respeito do suposto "conflito de classes", pelo qual grupos da elite estariam mostrando seu desprezo em relação aos jovens pobres que só estavam tentando trabalhar ou usar a motocicleta.
Os "motoboys” não se manifestaram no início porque foram atraídos pela oportunidade de novos empregos, melhores dos que o mercado lhes oferecia. A isto foi acrescentado o seu despreparo para usar a motocicleta, o seu desconhecimento sobre os elevados riscos do uso deste veículo e a pressão da sociedade nas grandes cidades para a entrega rápida de mercadorias e documentos, sem consideração sobre o perigo que esta atividade significava para um grande número de jovens brasileiros que passaram a arriscar sua vida nos anos 2000 ganhando R$ 7 por hora. Apenas nos últimos cinco anos as associações dos "motoboys” passaram a assumir uma postura mais crítica a respeito do tema.
As autoridades federais ou silenciaram ou adotaram a estratégia de defesa dos empregos que seu uso poderia gerar e pela "libertação” que traria aos pobres que não tinham mobilidade. Ignoraram que cada grupo de 820 novas motocicletas colocadas em circulação estará ligado à morte de um usuário – índice que levaria ao fechamento de uma indústria farmacêutica que lançasse um novo medicamento com esta letalidade. Por outro lado, passou a ser difundida a "conclusão” de que acidentes e mortes fazem parte da vida e que nada de especial estava acontecendo com as motocicletas, ignorando os alertas da grande periculosidade do seu uso, dados pela extensa literatura internacional produzida desde os anos 1940 na Ásia e na Europa e que a própria indústria de motocicletas conhece em detalhes. Após cinco décadas de grandes investimentos em segurança no trânsito, os países europeus conseguiram reduzir dramaticamente os índices de mortalidade no uso dos vários modos motorizados e não-motorizados, com apenas uma exceção – as motocicletas. Porque será?
Agora, a realidade das vias e a proximidade das eleições parecem ter conseguido provar o que os críticos deste processo trágico não conseguiram: a Presidência da República e os órgãos ligados à política do trabalho confirmam que o uso das motocicletas no transporte de passageiros e na entrega de mercadorias é uma atividade que tem risco real de causar ferimentos graves e até a morte dos seus usuários. Isto corrobora os estudos internacionais e nacionais que mostram aquilo que o bom senso aponta: não há como garantir segurança aos usuários de motocicleta que circulam em altas velocidades e junto a veículos maiores e mais pesados.
Considerando a decisão tomada, é importante analisar sua motivação.
Se o motivo é uma periculosidade inata ao uso da motocicleta, por que isto só foi feito agora, quinze anos depois que os "motoboys” começaram a morrer no trânsito e que dezenas de estudos apontaram a gravidade do problema? Por que não é organizada outra forma de distribuir documentos, que evite a morte das pessoas? Os outros motociclistas que usam as mesmas vias usadas pelos "motoboys” também receberão "adicionais de periculosidade”?
Se, por outro lado, a periculosidade decorre do comportamento inadequado ou imprudente dos "motoboys”, porque eles devem receber este adicional ao invés de treinamento, capacitação e melhores condições de segurança na circulação?
Assim, como acontece com uma freqüência desanimadora no nosso país, a proximidade das eleições e a ação dos representantes dos "motoboys” facilitaram a montagem de mais um espetáculo de oportunismo eleitoral, de hipocrisia e de negação do direito à vida. Os "motoboys” decidiram, como adultos, que aceitam continuar a pôr sua vida em perigo em troca do adicional de periculosidade e sua decisão deve ser respeitada. Mas isto mostra também a força do legado do processo histórico de exclusão e de exploração na nossa sociedade e a postura de submissão e de desvalorização da vida a ele relacionada.
Eduardo A. Vasconcellos, Instituto Movimento, São Paulo
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