8 de fev. de 2012

Campanha na Austrália reduz mortes no trânsito expondo a brutalidade dos acidentes

Campanha dirigida a motorista adota tática ousada: mostram de maneira ultraexplícita como um único deslize é o que basta para matar ou morrer

Daniela Macedo
 
A mãe está atrasada para buscar o filho na escola. Cautelosa, ela acomoda a caçula na cadeirinha do banco traseiro do carro, afivela bem o cinto, e então corre para não deixar o menino esperando — acelera no sinal amarelo, corta caminho por um bairro residencial e pisa fundo no acelerador. De repente, um cachorro atravessa a rua; a motorista faz uma manobra abrupta e escapa de atropelar o cão. Mas não o menino que vinha atrás dele: numa cena horrorizante, e mostrada em todos os seus detalhes pavorosos, o carro atinge com violência o garoto, que rola já sem vida sob ele. O telespectador, chocado, lê a mensagem na tela: “Don’t fool yourself, speed kills” (Não se engane, velocidade mata). Em outra propaganda, um jovem casal troca olhares carinhosos enquanto passeia de carro. O cenário idílico e a trilha sonora fazem pensar que se trata de um inocente anúncio de carro — mas só até ele se transformar em um espetáculo horrível de ferro retorcido e sangue: o rapaz, que havia bebido um pouquinho (mas pouquinho mesmo) no aniversário do sogro, distraiu-se e enfiou seu carro em um caminhão parado no acostamento. A mensagem no final do filme é, desta vez, ainda mais direta: “If you drink, then drive, you’re a bloody idiot” (Se você bebe, e então dirige, você é um perfeito idiota).

As cenas descritas acima fazem parte de uma muito bem-sucedida campanha de segurança no trânsito que vem sendo veiculada na Austrália desde 1989. As imagens ultrarrealistas parecem feitas para uma superprodução hollywoodiana.

Produzidos pela TAC, sigla para Transport Accident Comission (Comissão de Acidentes no Transporte), do estado australiano de Victoria, os comerciais mostram ao telespectador que não é preciso incorrer em comportamentos de risco flagrante para cometer um ato fatal de imprudência. Quem nunca acelerou um pouco mais para chegar a tempo a um compromisso, ou se julgou capaz de dirigir depois de duas cervejas ou uma taça de vinho? Atores dignos do Oscar interpretam a mãe apressada, o casal após um almoço com amigos, o pai de família que, levemente embriagado, se preocupa apenas em se desviar da blitz policial — e, como não poderia deixar de ser, os jovens irresponsáveis que voltam para casa depois de uma noite embalada a bebidas ou drogas. Em poucos minutos, as historietas levam dessas alegres confraternizações às colisões, por vezes com imagens devastadoras do momento do acidente, e daí ao desespero dos familiares ao receber a trágica notícia. Não há personagens enlouquecidos, completamente embriagados ou detestáveis na sua indiferença pela vida alheia: só gente comum, que não quer fazer mal a ninguém, mas comete um deslize terrível — e não só paga caro por ele como faz com que inocentes paguem caríssimo também. O objetivo, claro, é estimular a identificação do público com os protagonistas dessas histórias dramáticas.

Câmera Lenta: Um dos comerciais da campanha que vem sendo veiculada há mais de vinte anos na Austrália: cenas ultraviolentas, e redução de 52% nas mortes no trânsito
 
Câmera Lenta: Um dos comerciais da campanha que vem sendo veiculada há mais de vinte anos na Austrália: cenas ultraviolentas, e redução de 52% nas mortes no trânsito.

Para criar esses comerciais, a comissão australiana baseou-se tanto em estudos psicológicos como em pesquisas de opinião. Além dos vídeos ficcionais, ela produz filmes com depoimentos reais, extremamente emocionantes, de familiares de vítimas. “O realismo é parte de uma estratégia abrangente, que combina bons argumentos, didatismo e emoção para envolver o público. É duro assistir aos comerciais — mas eles são eficientíssimos na transmissão da mensagem”, disse a VEJA John Thompson, diretor de marketing da TAC. “Para muitos motoristas, as cenas fortes tocam diretamente no medo de morrer ou de se ferir. Consequentemente, provocam uma mudança de comportamento no trânsito”, completa. Os números comprovam essa tese. Quando foi ao ar a primeira propaganda, em 1989, a Austrália amargava 2 801 mortes por ano nas ruas e estradas do país. Duas décadas e 150 comerciais depois, os australianos estão mais prudentes: em 2010, 1 352 pessoas morreram no trânsito, uma redução de 52% nas fatalidades, a despeito do aumento no número de veículos em circulação. Nos dez primeiros meses deste ano, as mortes somaram 1 040. As propagandas são veiculadas na TV australiana em diversos horários — as mais explícitas são transmitidas à noite —, e muitas foram exportadas para países como Irlanda, África do Sul, Nova Zelândia e Vietnã. Os vídeos, depois, continuam a se propagar na internet. O filme de cinco minutos feito em 2009, que compilava imagens de propagandas antigas para comemorar os vinte anos de campanha, foi reproduzido 14 milhões de vezes na web. Os brasileiros formaram a segunda maior audiência, com 2,5 milhões de acessos.

Duplo Impacto: O susto e a violência das colisões não são o único aspecto das campanhas: como na imagem ao lado, de um comercial do País de Gales, o sofrimento das vítimas é outro elemento considerado indispensável
 
Duplo Impacto: O susto e a violência das colisões não são o único aspecto das campanhas: como na imagem ao lado, de um comercial do País de Gales, o sofrimento das vítimas é outro elemento considerado indispensável.

Campanhas feitas para chocar não são exclusividade das autoridades australianas. Um vídeo produzido pela polícia do País de Gales em 2009 mostra o gravíssimo acidente provocado por uma jovem que tecla uma mensagem no celular enquanto dirige. Bastam alguns segundos de olho no aparelho para que a garota invada a faixa contrária e colida com outros dois veículos. A sequência mostra as três ocupantes do carro sendo chacoalhadas como bonecas de pano, suas cabeças estraçalhando as janelas. A intenção de horrorizar o telespectador aparece, inclusive, nos detalhes: o bebezinho mostrado em close durante o resgate das vítimas está de olhos abertos, mas, como permanece imóvel, deduz-se que esteja morto.

O vídeo de quatro minutos rapidamente se tornou um hit na internet — foi acessado mais de 5 milhões de vezes no YouTube —, provocando debates sobre segurança no trânsito em canais de notícias da Inglaterra e dos Estados Unidos. Essas cenas fortes, porém, não afetam todos os motoristas com a mesma intensidade. “Estudos apontam que campanhas que se baseiam em imagens chocantes de acidentes, principalmente relacionados à combinação de álcool e direção, são pouco eficazes entre os jovens”, diz o especialista Anthony Reinhardt-Rutland, da Sociedade Britânica de Psicologia. Para garantir que sua mensagem sobre segurança no trânsito chegue aos jovens, a comissão australiana apela para um temor mais específico deles: o de serem pegos pela polícia. “Para esse público, criamos filmes que enfatizam a atuação policial”, diz Thompson. É óbvio, entretanto, que para que essa ameaça surta efeito ela tem de ser real. Ou seja, é preciso que as leis e a fiscalização funcionem. Nas ruas e estradas brasileiras, vigora a impunidade. E as campanhas discretas, que apenas insinuam situações de perigo e são restritas às épocas de maior movimento nas estradas, não intimidam os motoristas infratores: no ano passado, foram mais de 40 000 vítimas fatais — um aumento de 30% na última década. Revendo: na Austrália, tem-se 6,14 mortes no trânsito para cada 100 000 habitantes. No Brasil, há 21,36, ou mais que o triplo. É uma estatística da qual cada motorista, antes de sentar-se ao volante, deveria se lembrar. Com vergonha, com pesar e com a determinação de não somar a si mesmo, ou a outros, a ela.

Realidade e ficção: As propagandas australianas impressionam tanto pelas imagens fortes dos vídeos ficcionais, como o que mostra a pavorosa recuperação de um acidentado, quanto pela emoção devastadora dos depoimentos reais de parentes de vítimas — como o do pai que chora a morte do filho no local em que o perdeu (acima)
 
Realidade e ficção: As propagandas australianas impressionam tanto pelas imagens fortes dos vídeos ficcionais, como o que mostra a pavorosa recuperação de um acidentado, quanto pela emoção devastadora dos depoimentos reais de parentes de vítimas — como o do pai que chora a morte do filho no local em que o perdeu (acima).


Fonte: 

Nenhum comentário:

Postar um comentário