1 de abr. de 2015

Aposta nos motoristas do futuro

Reportagem  // Juliana Romão  

A educação para o trânsito contribui para formar jovens mais conscientes e capacitados para se comportar de maneira segura como pedestres ou ao volante
O estudante do ensino médio é o próximo condutor em um mundo onde os acidentes de trânsito representam a principal causa de morte na faixa de 15 a 29 anos, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). No Brasil, o Ministério da Saúde registrou mais de 43 mil mortes nas ruas e estradas em 2011, o que equivale a uma média de 120 pessoas que perdem a vida por dia. Segundo números do Seguro de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre (DPVAT), que contabiliza a data do pagamento da indenização e não a da ocorrência, como faz o Ministério da Saúde, foram concedidas em 2012 mais de 60 mil indenizações por morte e mais de 352 mil por invalidez permanente. 

Trata-se de dados alarmantes, que levaram a Organização das Nações Unidas (ONU) a decretar esta como a Década Mundial de Ação pela Segurança no Trânsito (2011/2020) em um esforço de reverter a tendência crescente de fatalidades e ferimentos graves relacionados ao transporte. E, ainda que os números sejam chocantes, eles não pintam todo o quadro. As metrópoles vivem uma onda de incivilidades no trânsito. No Brasil, a frota de mais de 80 milhões de veículos engarrafa as cidades noite e dia, gerando no condutor quase uma regra comportamental de intransigência, impaciência, desrespeito e desobediência às regras de tráfego — um verdadeiro caos. 

Para reverter esse quadro, é necessário quebrar o círculo vicioso em que o condutor infringe regras e não pensa coletivamente, pois não está inserido em uma cultura de educação ética e cidadã no trânsito. Pela mesma razão, novos motoristas reproduzem as más condutas. A mudança é necessária, e a educação pode ser a ferramenta para romper essa relação de causa e efeito, acredita a especialista em gestão e segurança no trânsito Irene Rios, pesquisadora e professora de Projeto em Educação para o Trânsito da Universidade Vale do Itajaí (Univali). “O ensino da civilidade no trânsito deve começar na primeira infância, através do exemplo, e seguir por todo o sistema escolar, ficando na pauta até a idade adulta”, afirma a pesquisadora.

Contudo, não é isso que acontece. O próximo condutor — o estudante do ensino médio — fica à margem do amplo debate que envolve o trânsito e os valores que regulam o sistema de convivência, do pensar e agir de cada pessoa, do respeito às liberdades individuais. Irene Rios destaca que as escolas costumam abordar o trânsito na educação infantil e no início do ensino fundamental, quase exclusivamente na Semana Nacional do Trânsito, que ocorre todos os anos de 18 a 25 de setembro, como forma de estimular ações educativas e boas práticas. “O evento deveria ser a culminância de um trabalho anual feito com os alunos. Muitas vezes, porém, é o único momento em que se discute o tema”, lamenta.
 
Além de regras e placas
À medida que o aluno avança no sistema de ensino, menos oportunidades ele tem de refletir sobre o trânsito de maneira mais ampla. “Aprender sobre o trânsito não é apenas conhecer as regras e placas. É pensar em valores positivos, boas condutas e respeito a todos e a cada um”, explica Irene. Em geral, o primeiro contato do estudante com conteúdos de trânsito ocorre no processo de aquisição da carteira de habilitação, em uma abordagem rápida e superficial. “Tudo acaba sendo muito técnico, feito com o objetivo de passar na prova”, analisa a especialista. “Não há foco educativo e o candidato não tem noção do risco que vai correr, pois as aulas não são no trânsito”, avalia.

Irene Rios acredita que a escola deve ser o contrafluxo da cultura de padrões inadequados, a qual se forma a partir de valores invertidos que se consolidam. “É difícil o aluno aprender a usar o cinto quando o próprio pai não usa, quando a cultura é a de que o bom motorista é o que não é multado, quando vale estacionar em qualquer lugar. A escola deve mudar esses conceitos”, propõe. Se a abordagem lúdica é um caminho eficaz na educação infantil e no ensino fundamental, então no ensino médio é interessante proporcionar a vivência. “Melhor do que mostrar o vídeo de um acidente, por exemplo, é fazer os alunos entrevistarem pessoas com sequelas”, sugere Irene. Mais eficiente do que orientar para o estacionamento correto é verificar na rua como um veículo estacionado fora do local delimitado impede outros de estacionar. 

Em paralelo ao caminho de levar o estudante a viver a realidade do trânsito, nas oficinas que realiza com professores, Irene Rios indica a prática da transversalidade, que significa inserir o tema trânsito nos conteúdos curriculares. Na aula de português, por exemplo, durante o trabalho de verbo, no lugar de usar a frase “Bia é uma das que gostam de comer feijão”, o professor pode utilizar “Bia é uma das que sempre atravessa na faixa de pedestre”. “É possível fazer isso todos os dias, com todas as disciplinas”, garante a pesquisadora. Ela reforça que todas as iniciativas são válidas, mas só acontecem com o estímulo do professor, que também precisa ser sensibilizado para promover a adequação do currículo e inserir o tema do trânsito no cotidiano. “O educador precisa entender que faz parte desse processo, que desempenha um papel e pode ajudar na causa”, afirma.

Para os que querem começar, mas não sabem como, a educadora propõe a utilização da Portaria nº 174 do Denatran, que em 2009 estabeleceu as Diretrizes Nacionais de Educação para o Trânsito no Ensino Fundamental, seguindo a sugestão do Conselho Nacional de Educação. O documento, disponível na internet no site do Denatran (www.denatram.gov.br), contém sugestões de abordagens e temas para os diversos níveis de ensino em cada disciplina. “Ainda que não seja específico do ensino médio, ele pode ser facilmente adaptado”, explica Irene. 

Realidade e mudança
Em 2009, o Centro Educacional Católico de Brasília (CECB) viveu na prática a realidade do caos no trânsito com a morte de um aluno de 17 anos em um acidente de carro. Ele estava ao volante da caminhonete do pai e dirigia sem habilitação. 

A perda gerou comoção e muita reflexão sobre a responsabilidade de ser condutor. O assunto ganhou ainda mais corpo com o crescimento dos incontáveis problemas diários de estacionamento, desrespeito à faixa de pedestres e confusão de carros na entrada e saída de veículos na própria escola. “A escola precisava agir para desenvolver nos alunos a consciência da importância de pensar o trânsito como cidadãos”, lembra o coordenador pedagógico do ensino médio do CECB, Giuliano Bitencourt.

O resultado foi a criação do pioneiro Programa Motorista Cidadão em 2010, curso de educação para o trânsito que permite aos alunos participantes eliminar a fase teórica do processo para obter a carteira de habilitação, possibilidade ainda pouco difundida entre as instituições de ensino, mas prevista desde 2007 pelo Conselho Nacional de Trânsito (CONTRAN) através da Resolução nº 265. 

O aluno que conclui as atividades extracurriculares em escola certificada pelo Departamento Nacional de Trânsito (Detran) pode substituir o curso de formação teórico-técnica, necessário à realização do exame escrito de legislação no trânsito, que antecede a prova prática. Na opinião de Giuliano Bitencourt, a portaria abriu caminho para uma educação qualificada sobre o trânsito. “Os alunos não estudam apenas para fazer uma prova. O grande objetivo é integrá-los ao trânsito e fazê-los interagir com a habilitação antes de serem condutores”, explica. 

O projeto tornou-se realidade a partir da parceria com o Grupo de Educação para o Trânsito (Getran), empresa formada por uma equipe multidisciplinar especializada em questões de trânsito. O grupo, que conta com cinco professores, montou um projeto pedagógico específico para os seis meses finais do 2º ano e os seis iniciais do 3º do ensino médio. No conteúdo programático, cinco disciplinas: primeiros socorros, direção defensiva, legislação no trânsito, noções de mecânica básica, meio ambiente e convívio social, contabilizando um total de 150 horas aula (o Denatran exige o mínimo de 90 horas).  

O desafio estava lançado. Não tanto em relação ao conteúdo, mas sobretudo quanto à especificidade do público-alvo, explica o pedagogo Ricardo Corrêa Leal, instrutor de trânsito e coordenador do Getran. Para ele, o sucesso do programa está na linguagem. “Foi preciso criar um modelo pedagógico atraente ao público jovem, que nessa faixa etária está assoberbado de tarefas e tem gostos bastante específicos”. A elaboração do projeto pedagógico buscou implementar uma metodologia que relacionasse a teoria à prática, o que acontece ao final de cada disciplina. “Quando concluímos um conteúdo, fazemos uma oficina vivencial: vamos às ruas com pranchetas para observar os comportamentos, as infrações graves que acontecem a todo instante”, conta Leal. “Se a aula é de primeiro socorros, por exemplo, com a ajuda do Detran isolamos uma faixa e simulamos um acidente”, detalha. A vivência propicia ao aluno um contato diferenciado com o problema e com a solução. “Fazemos uma releitura das ações e ressignificamos os valores do trânsito”, relata. “Isso mexe com os alunos, pois eles sempre se surpreendem.”

A receptividade no ano da estreia do projeto superou as expectativas do CECB, que assumiu os custos do programa a partir de 2011, quando as atividades, que começaram sendo pagas pelos estudantes interessados, passaram a fazer parte da matriz curricular. O número de alunos saltou de 40 inscritos em 2010 para 240 em 2013. Ricardo Leal credita os resultados positivos às discussões e vivências práticas, que fazem com que os estudantes que estão prestes a tirar a carteira de habilitação integrem-se ao trânsito de outra forma. “Discutimos mobilidade, políticas públicas e relação social, além de várias temáticas que não abordam somente o viés do condutor”, enumera o coordenador do Getran. O resultado pode ser verificado pela mudança de conduta. “Os alunos transformam-se em agentes de trânsito, fiscalizando e ensinando”, atesta. “Eles estão numa idade em que são muito cobrados, por isso sentem uma enorme satisfação em explicar aos outros, especialmente aos pais, sobre a dinâmica de um acidente, sobre legislação ou qualquer tema”, salienta. 

A interdisciplinaridade também faz parte das aulas extracurriculares e auxilia o aprendizado de outras disciplinas. “Para falar da dinâmica de um acidente, usamos a física. Se o assunto é mobilidade urbana, podemos falar de geografia”, exemplifica Leal. Foi assim que os alunos da escola escreveram com desenvoltura as redações do último Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). 

“O tema foi Lei Seca, assunto bastante discutido nos encontros”, exalta. 

Videogame pela vida
Explorando o interesse dos jovens por jogos eletrônicos e interação virtual, o programa de formação para educadores do ensino médio Jogo da Vida em Trânsito apresenta Autopolis (www.jvt.org.br), um videogame de acesso gratuito, que a um só tempo contribui com a transformação dos jovens e estimula iniciativas focadas no professor, facilitando a implantação de programas de educação no trânsito em sala de aula.
O diretor do estúdio Virgo Games, Mário Lapin, que desenvolveu o jogo em parceria com a Fundação Volkswagen, explica que o projeto pretende promover a educação dos adolescentes no momento em que ainda estão formando seus valores e seu senso crítico. “Não abordamos apenas os acidentes e problemas, mas também o estímulo à participação dos jovens na cidadania”, explica Lapin. “Buscamos trazer estratégias didáticas que possam ajudar a desenvolver aspectos como leitura de mundo, autonomia e tomada de decisões baseada em valores”.

Por meio do game, o aluno diverte-se, sente-se 
desafiado e vive situações de dilema, enquanto o professor usufrui de uma ferramenta para contextualizar o tema do trânsito em seu cotidiano local. “Ele tem à sua disposição uma plataforma on-line, um ambiente de aprendizagem personalizado”, destaca Mário Lapin. 

Quando se cadastra e entra no sistema, o educador tem acesso a uma biblioteca de projetos de temas variados, suporte bibliográfico e sugestão de uso em sala de aula. Os temas são práticos e permitem que cada turma discuta cenários e soluções específicas, contextualizadas com a realidade da cidade, do bairro e da escola. Na plataforma, o professor consegue modificar qualquer projeto, no próprio ambiente on-line, ao qual os alunos também têm acesso, podendo participar das mudanças.

A partir de um código curto e simples que o professor escolhe e disponibiliza para a turma, todos estarão conectados ao mesmo professor, avançando e sendo desafiados pelo conteúdo e pelo jogo interativo, que pode mudar a cada nova proposta de aula. “Para o professor, esse tipo de abordagem envolve investigação e criação de hipóteses”, ressalta Lapin. Para o aluno, é uma aprendizagem experiencial. “Um jovem não vai deixar de correr porque alguém disse para não correr. Ele deixa de correr porque entende que é o melhor a ser feito”. 
 
Crédito da imagem:
Foto: Anderson Brasil Barbosa
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