Christiane Yared – uma morena de cabelos fartos e um olhar… um olhar que surpreende pela força, determinação. E pelo grito incessante de “Vida”, enquanto a vida insiste em lhe apresentar a Morte.Sentada ali, naquele sofá branco que esclarece de uma vez por todas as origens libanesas, Christiane discorre a sua trajetória com a firmeza de profissional do conto: Corro o dia inteiro, mas gosto de produzir. Quando Christiane diz que corre o dia inteiro, ela não exagera. Levanta-se cedo, daí a sua vida se divide entre a igreja, a casa, os filhos, a neta – Casei-me aos 19 anos e logo tive meu primeiro bebê. Tanto eu como o Gilmar éramos muito novos, sem dinheiro. Sem saber como ganhar a vida, e já com o segundo filho nascido, segui o conselho de minha mãe: fiz um curso de bombons e comecei a vendê-los na cantina da igreja. Chris prometeu a Deus doar 10% do lucro à Igreja. Coincidência ou não, a confeiteira começou a receber encomendas vultosas. Da cantina da igreja à confeitaria premiada pela revista Veja, já se passaram 25 anos de muito trabalho e dedicação da proprietária, que confessa: – Valeu a pena as noites carregando a Daniele e o Rafa da casa da minha mãe para a nossa, só para dormirmos pertinho das crianças.
Hoje a confeitaria é considerada uma das melhores de Curitiba, porém eu não faria de novo. A morte do Rafa me ensinou que se pode ter uma vida sem tantas coisas, ter menos enfeites, cortinas, quadros em casa; desfrutar mais tempo com os filhos. Não só pelo filho que se foi, mas pelos que ficaram. Eu aprendi isso mediante muita dor. “Rafa” é o apelido carinhoso dado por ela ao segundo filho, batizado pelo casal Yared como Gilmar Rafael, de cujo nome ela nunca gostou. Dizem que coração de mãe sabe tudo; a julgar pelo de Christiane, parece verdadeiro. Ela veio a descobrir mais tarde que o nome do filho significa “o resgatado”. Foi exatamente o que aconteceu na noite de sete de maio de 2009, pouco antes do acidente que tirou a vida do rapaz de 22 anos. Na dúvida se o filho pressentira a morte, com a voz carregada de emoção, mas sem perder a força que lhe parece brotar das entranhas, Christiane recorda o último dia na companhia de Rafa: – Sete horas da manhã Rafael passou na confeitaria, pegou doces, salgados, refrigerantes e levou à faculdade. Ele deu uma festa de despedida aos amigos, pois iria para a Austrália, estudar. Achei esquisito e, na hora do almoço, perguntei a ele por que dar uma festa de despedida faltando ainda dois meses e meio para a viagem.
O Rafa era muito brincalhão e nem me deu ouvidos, contou que foi ótima a festa, tiraram muitas fotos, e pôs-se a me mostrar a foto do seu passaporte dizendo como ele era a coisa mais linda que eu havia feito na vida. De fato, o Rafael era um rapaz muito bonito. Chamava a atenção de cima dos seus 1,98m, 98kg, “barriguinha tanquinho”, como ele mesmo definia. Ninguém, muito menos eu, mãe, ficava impune diante dos dentes perfeitos que ele exibia ao sorrir. Vencida pelos olhos graúdos cheios de alegria, eu deixei aquilo para lá, continuamos a comer. No fim do almoço, ele beijou a irmã, a sobrinha, a mim, dizendo que me amava. Subiu ao estúdio do Gilmar, o beijou, dizendo-lhe que o amava muito e saiu correndo. Foi a última vez que o vimos – completa Chris, com a voz embargada, e continua: – Naquela noite, o Rafa resolveu voltar à presença de Deus, ele deixara de frequentar a igreja desde os 18 anos por causa de uma desilusão amorosa. Telefonou ao Antônio, um amigo de infância, e o convidou a ir à igreja. Antônio relutou, dizendo que estava cansado e que constantemente o chamava em vão; nessa noite não estava disposto. Mas Rafael insistiu e o amigo cedeu, acompanhando-o à
A pregação do culto era sobre resgate. Sobre o fato de Jesus ter vindo para os doentes, não para os sãos. Para resgatar os perdidos. O pastor convidou àqueles que queriam mudar de vida a irem até a frente para serem resgatados por Jesus. Rafael foi o primeiro a se levantar. Antônio contou que foi emocionante, pois o Rafa chorava muito, contagiou as pessoas com a sua fé. Ao voltar para o banco, colocou a mão na perna do amigo, dizendo: “Antônio, hoje Jesus me resgatou. Domingo é dia das mães e eu vou presentear a minha mãe com meu retorno à igreja”. Em seguida ambos foram comer pizza. No meio da conversa, Rafael disse que pretendia voltar a ajudar nos trabalhos evangélicos, pois somente Deus pode mudar o ser humano. Por volta de meia-noite, quando ambos se preparavam para irem embora, Carlos Murilo telefona ao Rafael pedindo carona. O meu filho era o “amigo do carro”, todos ligavam e pediam carona
Mal se despediu de Antônio, correu ao shopping onde esse outro amigo trabalhava e o apanhou.” Ambos morreram no acidente. Terrível, meu Deus, terrível. Logo que Rafael entrou na Rua Monsenhor Ivo Zanlorenzi, foi atingido pelo supercarro do deputado Fernando Carli Filho, “a mil por hora”. O impacto foi tão violento que a cabeça do meu filho foi decepada pelo veículo do deputado. Carli dirigia a mais ou menos 191,75 km por hora – e só digo mais ou menos porque a fita do posto de gasolina, que fica próximo ao local do acidente, foi adulterada, senão teríamos a velocidade exata.
Enquanto a polícia se ocupava sabe-se lá com o quê impedindo de me avisar sobre a morte do meu filho, eu dormia pesadamente. Até que dois agentes funerários bateram à nossa porta em busca de negociarem o caixão. Atrapalharam-se ao perceber que nem eu nem Gilmar sabíamos de nada. Um dizia que o Rafael estava muito mal no hospital, enquanto o outro dizia que ele havia morrido. Deixamos os dois falando sozinhos na portaria e corremos ao telefone. A polícia transferiu a ligação para os bombeiros e eu perguntei: “Por favor, estão dizendo que o meu filho sofreu um acidente, mas acho que é um assalto.” – porque eu desconfiei que os agentes fossem assaltantes – “Não pode ser verdade.” Do outro lado da linha, o bombeiro tapou o fone e falou com o colega: “Tenente,é uma das mães daqueles rapazes que entraram em óbito.” Ao ouvir tais palavras, as minhas pernas tremeram, as mãos esfriaram e eu perdi a capacidade de pensar, entrando num pesadelo sem fim.
Enquanto eu chorava o meu filho, provas incriminadoras sumiam;enquanto eu processava o luto, testemunhas mudavam sua versão. Restava apenas a constatação do envolvimento do deputado Carli,mesmo porque esse não tinha jeito, ele tinha diversas escoriações pelo rosto,denunciando o acidente.
Parei de chorar e fui à luta. Aliás, parei de chorar, não; choro até hojee chorarei o resto da vida de saudades do meu pedaço Rafael. Enchi o peito de força, dessas que a gente não sabe de onde vêm; somente Deus e a minha fé Nele para explicar, e fui em busca de justiça. Entretanto, a Justiça é cega para uns e muda para outros. Não desisti, não me prendi à dor da perda, tampouco da injustiça que estraçalha meu coração.Ao invés de enterrar um filho, eu plantei um filho – exclamou Christiane,emocionada.
Enquanto Christiane atendia a uma ligação urgente, fiquei observando-a. Após perder um filho de maneira tão brutal, tragédia que deixa muitas mães em estado “zumbi” por tempos, às vezes pelo resto da vida,aquela mulher transmitia tanta força no olhar, tanta firmeza na voz, que me deixava embasbacada. Imaginei-a antes do acidente. Ela deveria ser dessas pessoas que se ligam na tomada no dia do nascimento e só se desligam quando falta pouco para o fim de suas existências. Admirável: é o substantivo que tenho para defini-la. Mulheres como Christiane nos impelem a colher o sumo exalado de seus poros para com ele confeccionarmos em nós o manto energético que parece envolvê-las.
Há um ano o acidente de Gilmar Rafael Yared e Carlos Murilo ocupa a mídia local. Fruto da luta incessante de Christiane e do esposo em busca de justiça. Para alguns paranaenses, como o taxista que me levou à mansão Yared, é “um exagero da mãe”. Há os que ironizam o fato de a morte de Rafael parecer ser a única no Estado. A essas pessoas, Christiane devolve resposta firme: “Sim, acidentes acontecem todos os dias, mas eu não aceito enterrar um filho, plantarei um filho e regarei a terra com lágrimas que vão valer a pena, pois colherei frutos” – disso Chris não tem dúvidas. Mas nem só de ignorância vive o Paraná; ao contrário, a maioria da população, para o alívio dos crentes na salvação do homem, se solidariza com a batalha dessa mãe incansável, que busca justiça, não só para o seu filho, mas para o filho de outras famílias; que engole a sua dor para consolar a dor de outras mães que não conseguem se reerguer sozinhas e “plantar o filho”.
No primeiro momento, a frase me soou estranha, mas Christiane, com a arte da eloquência que lhe é intrínseca, fez-me compreender: – É quando você entende que a morte não venceu. Creio que a morte vence quando ela entra na tua alma e te mata junto. Daí você passa os dias deprimida, num quarto escuro – nega qualquer manifestação da vida para “chorar” o filho morto. Ora, você pode chorar teu filho e dar continuidade à tua família, ao teu trabalho e, o que é mais importante,fazer diferença no mundo. Mudar o que está errado; se é a legislação,então, vamos modificá-la – o povo pode promulgar leis, basta unidade.– Eu vejo – continua Christiane, persuasiva – uma grande cidade iluminada e penso: ela é feita de luzinhas que, se apagarem aqui e ali,nosso país irá se transformar em completa escuridão. Portanto, restaurar a família após uma perda tão significativa como a de um filho é a primeira tarefa da mãe. Ela deve se reestruturar, compreender o momento pelo qual está passando e aceitar. A morte é um aprendizado. Ninguém diz à mãe na maternidade que aquele bebê será arrancado dela, mas, se isso acontece, é preciso parar de culpar a Deus, à vida e assumir a sua parcela de culpa. Sim, temos culpa nas mortes dos filhos ceifados pelo assalto,sequestro, acidente de trânsito, pois, o que fazemos a respeito? Nada.
Aos vinte dias da morte do Rafael, uma mãe me ligou. Essa mãe estava com 42 kg, morrendo com câncer no pâncreas. A doença dela era consequência da imensa tristeza sentida pela morte do filho, Danilo.Após chorarmos muito, ela, Sueli, me contou que um policial entrou em sua casa, na hora do almoço, e executou o filho pelas costas. Ele havia confundido o rapaz com um traficante procurado e, ao perceber o seu engano, pediu desculpas e saiu. Eu pensei: Deus, que terrível ver o filho morrer dessa maneira, e injustamente!Num momento mais calmo da conversa, eu perguntei se havia outros filhos, marido; ela disse que sim. Rapidamente aconselhei-a se esforçar em busca da cura, pois a família dela precisava da sua força e orientação.Mas Sueli acreditava não ter força para se reerguer. Eu sou uma mulher crente em Deus, e é Ele que me levanta todas as manhãs. Por isso, sugeri que orássemos em prol da saúde dela.Passada uma semana, a Sueli voltou a me ligar dizendo que havia dormido melhor naqueles dias e gostaria de orar comigo novamente. Eu perguntei à Sueli se, caso Deus a curasse, ela se comprometeria a colaborar com a ONG que eu estava criando. Sueli disse que não havia esperança e os médicos mandaram-na morrer em casa. Fiquei brava, pois a desistência mexe comigo para valer, e disse: “Conheço um Deus a que nada Lhe é impossível e tudo pode”. Oramos e eu voltei ao projeto.Num mês e meio o telefone volta a tocar; do outro lado da linha ouço a voz animada da Sueli, dizendo que o câncer havia sumido e que ela estava ótima, até havia pintado o cabelo e já estava pronta para me ajudar no projeto. Atualmente, a Sueli é grande colaboradora da ONG,participativa nos encontros de mães realizados às terças-feiras.
A NAVI – Núcleo de Apoio à Vida nasceu para assistir mães que perderam seus filhos nas situações mais adversas. Lá elas recebem apoio de psicólogos, advogados, assistentes sociais, além de encontrarem um lugar para desabafar sua dor.
Ao chegar à ONG, as mães percebem que não são as únicas que perderam o filho; existem outras, e atuar para a mudança da legislação brasileira é a maneira de plantar esse filho, pois enterrá-lo, jamais.
Em geral, a primeira pergunta das mães é: “Por que Deus permitiu?” Ora, Deus nos permite agir e colher os frutos da ação. Cabe a nós escolhermos a postura frente à vida. Se eu acho que um juiz está correto em aplicar pena de 100 cestas básicas ao infrator de trânsito, eu mereço a violência em que o Brasil vem se transformando. Afinal, quantas cestas básicas valem um filho? Cem, mil? Um absurdo! Mas é lei. Devo aceitar ou lutar para modificar? O futuro do homem é resultado de suas decisões. A religião chama isso de livre-arbítrio. Ele é real, suas consequências também. Lutar por um mundo melhor é obrigação do ser humano, não de Deus. Perdeu o filho para o crack? Lute para que outros não se envolvam com as drogas. Seu filho morreu de beber? Lute contra o alcoolismo.Seu filho morreu de câncer, ou de infarto? Busque recursos para hospitais que mal param em pé devido à falta de verbas; visite esses doentes, quem sabe o caso deles tem solução e você pode ajudar.
O inadmissível é fazer da morte do seu filho o motivo para fugir às obrigações social e moral, destinadas aos habitantes da Terra. Há mães que preferem a escuridão. A escuridão é confortável, nela não há necessidade de procurar forças para colocar o pé no chão pela manhã, desenvolver as tarefas, fazer sua parte no mundo. No quarto, você pode se jogar na cama, usufruir das benesses da depressão, sem culpa, sem julgamento, pois, afinal, irão olhar para você e sentir pena – você está perdoada, perdeu um filho. A perda, por si só, é a desculpa perfeita para a fuga das responsabilidades. O que essas mães não percebem é que elas matam o marido e os outros filhos com elas, desmantelam a família inteira.
A essas eu pergunto: “Quem disse que a sua dor tem o direito de destruir o outro? A morte do teu filho não pode se transformar numa arma a ser utilizada para exterminar a família inteira.”Há o tempo do luto. Mas você pensa que a dor passa? Não, a dor será a sua eterna companhia, a lacuna não será preenchida por nada, tampouco pelos outros filhos. Entretanto, acredite, se você morrer junto com o teu filho amado, simplesmente acaba tudo. Eu choro diariamente a falta do Rafa, mas sorrio aos outros filhos, à neta. Não me excluo da vida deles, ao contrário, procuro ser presente, ajudando-os a vencerem seus obstáculos. Se a perda do Rafael abriu um buraco em mim, perder o marido, a neta, os outros filhos me mataria. Vivenciei vários estágios da dor; passei pela dor da revolta, depois a dor da perda, e finalmente a da aceitação – essa é a mais complicada, porque não tem volta. Mesmo crendo na eternidade, no reencontro com o filho, um dia; saudade é saudade.
Aqui na Terra a semente “Rafael”brotará em árvore frondosa, onde mães poderão descansar da sua dor e manterem as luzes da cidade acesas – finalizou Christiane.
Levei alguns segundos para desligar o gravador. Minha atenção estava voltada para as palavras de Christiane, que nos penetra e faz pensar: Será que eu conseguiria me reerguer assim? Perder um filho é mais que uma ferida a cicatrizar, é existir em carne viva, pois subverte a ordem cronológica,alterando valores e hábitos.
Perder a extensão do seu corpo, do seu sangue deve ser como Christiane afirma: “escuridão”. Sair dessa escuridão onde dor e sofrimento nos abatem sem tréguas é ato incompatível com a força humana. Entretanto, quando não se pode vencer, é possível adaptar-se, ou seja, encontrar a maneira de conviver com essa dor sem Nome. “Ocupar-se, ocupar-se”, diriam os psicólogos. Christiane criou a sua receita: plantou o filho e se ocupa de ele se transformar em árvore,gerar sombra e proteção a outros garotos que correm o risco de morrerem no trânsito, diariamente; e de iluminar a escuridão de outras mães.
Staël Gontijo
Extraído do livro de Staël GontijoA coragem que vem de dentro : histórias de pessoas que superaram grandes traumasBelo Horizonte : Gutenberg, 2010.
Fonte: http://mulheresferidasquevoam.com/3020/a-morte-do-teu-filho-nao-pode-se-transformar-numa-arma-a-ser-utilizada-para-exterminar-a-familia-inteira - Acesso em 29/01/2014
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