Por Letícia Santana
Fotos: Ângela Scalon, Eduardo Ferreira, Mantovani Fernandes
Arte: Thiago Borges
Conviver em um espaço público com interesses individuais não é uma tarefa fácil. Imagine o Paulo que está de carro e precisa chegar a tempo ao trabalho; a Maria, de moto, que leva o filho à escola, enquanto seu José precisa apenas atravessar a rua para chegar ao posto de saúde. Agora imagine se o número de Paulos, Marias e Josés for multiplicado, cada um com seu meio de locomoção e com um objetivo particular. O trânsito, que deveria ser um ambiente de convivência harmoniosa, atualmente é visto como um cenário de xingamentos e falta de educação, e muito mais que estatísticas de mortes, encontram-se sentimentos de saudade e arrependimento.
Os nomes citados acima são apenas para exemplificar situações diárias, mas Ana Cláudia de Jesus se tornou personagem real nessas histórias de trânsito em Goiânia. Ela guarda na memória, desde 2007, a atitude agressiva de um motorista. Naquele ano, ela estava em uma esquina, no Pare, quando o motorista de uma caminhonete que estava estacionada, começou a dar ré, amassando o carro dela. Ana desceu do seu veículo para conversar com o motorista e foi recebida por xingamentos. “Ele também jogou o carro dele em cima de mim e eu caí. Falei que chamaria a polícia e neste momento ele deu um tapa na minha cabeça. Me senti arrasada. A pior das pessoas da face da Terra”.
A funcionária pública chamou a polícia e também o pai dela, que após saber o que tinha acontecido, empurrou o motorista. No final dessa história, o pai foi encaminhado à delegacia por agressão física, não houve testemunhas a favor de Ana, o carro ficou estragado e hoje resta o sentimento de medo. Recentemente, um outro motorista encostou no carro dela durante um engarrafamento. “Desci para ver se tinha estragado, ele gritou comigo e eu simplesmente entrei no carro e fui embora. Percebi que era mal-educado e não assumiu que a culpa foi dele, além do medo de acontecer tudo de novo”, relembra.
Impaciência no trânsito? Assim como Ana Cláudia, outros motoristas, pedestres, motociclistas, catadores de rua, já passaram por situações parecidas ou com piores desfechos. A intolerância com o próximo tem se tornado comum nas grandes e pequenas cidades. Para a psicóloga, especialista em Trânsito, Laila Elias, o trânsito tem refletido o atual estilo de vida das pessoas com rotinas diárias estressantes. Para ela, existe uma falta de consciência do que é o convívio social. “As pessoas devem compartilhar o espaço, e não competir por espaço. O trânsito revela a educação de um povo”.
Apesar de ainda não haver estatísticas oficiais de brigas de trânsito em Goiânia, pela dificuldade desse registro que envolve outros tipos de crimes e são distribuídos pelas várias delegacias policiais, é comum encontrar algum conhecido que já tenha sido agredido verbalmente, que levou uma “fechada” ou que teve um retrovisor quebrado por alguém mais nervoso. Para especialistas em trânsito, são vários e diferentes os motivos que levam um cidadão, muitas vezes visto como calmo, a tornar-se intolerante diante do outro.
O doutor em Psicologia do trânsito Fábio de Cristo ressalta que as razões para este tipo de comportamento variam e vão desde as características pessoais do indivíduo até os motivos externos como, por exemplo, pista engarrafada e obras nas ruas. “Frequentemente os dois elementos, nós e o trânsito, se misturam perigosamente”.
A psicóloga de trânsito do Detran Lorenna Torres acrescenta que as pessoas estão menos tolerantes com a frustração, por exemplo, de o outro passar na frente numa via. Junto a esses fatores, estão os problemas de casa, do trabalho, dos relacionamentos que as pessoas levam consigo. Lorenna conta que não são raros os casos de pessoas que, após envolvidas em acidentes de trânsito, confessam que naquele dia tinham brigado com a esposa, perdido o emprego, entre outros motivos. Outro fator que ela destaca é o sentimento de poder e de status que um carro pode proporcionar. “As pessoas pensam individualmente e o trânsito é um coletivo. O direito é igual para todos, independente do carro de cada um. Seja um Fusca ou uma Ferrari, a vaga é destinada para qualquer um deles”.
O comportamento agressivo não se restringe aos motoristas de carros. Motoristas de outros tipos de veículos quando dirigem acima da velocidade; motociclistas que “costuram” no trânsito; ciclistas que não utilizam a ciclovia; pedestres que não esperam o sinal abrir para eles … Todos têm uma parcela de responsabilidade no caos encontrado hoje pelas ruas de Goiânia ou de qualquer outra cidade.
Educação de trânsito se aprende com a família
Segundo a delegada Nilda Andrade, da Delegacia Especializada em Investigação de Crimes de Trânsito de Goiânia (Dict), cinco eixos estruturantes são necessários para a mudança no trânsito: educação no trânsito com aumento de campanhas e inclusão da disciplina nas escolas; engenharia de trânsito com veículos com mais segurança; fiscalização com mais agentes e meios eletrônicos; prevenção de acidentes e também a punição. Dentre esses eixos, o da educação pode ser realizado por cada indivíduo e os especialistas em trânsito são unânimes ao afirmar que a educação no trânsito deve começar ainda na infância. As crianças são os futuros personagens reais desse cenário e, ainda, multiplicadores do que aprendem.
O psicólogo Fábio explica em seu livro Psicologia e trânsito: reflexões para pais, educadores e (futuros) condutores que algumas pessoas consideram que a autoescola tem o papel de educar. “Engano. Este também é papel da escola. Mas digo isso no sentido amplo. Claro que não inclui o fato de ensinar a dirigir, que é responsabilidade das autoescolas. Toda a comunidade tem responsabilidade, começando pelos pais, nossos primeiros “instrutores””.Ana Júlia Gonçalves, de apenas quatro anos, é uma dessas crianças que já está aprendendo sobre o que pode e o que não pode no trânsito e passa o conhecimento adiante. É ela quem chama a atenção do pai quando o assunto é cinto de segurança. Desde novinha, a família ensinou que ao entrar no carro, todos devem estar de cinto e ela na cadeirinha com cinto, mas às vezes, por conta da pressa ou esquecimento, o pai de Ana Júlia, Samuel Alves, é lembrado sempre pelo seu anjo da guarda. A mãe de Ana Júlia, Juliana Gonçalves, conta outras situações que a filha observa, como por exemplo, quando um carro passa em alta velocidade por eles e Ana Júlia fala “é, mamãe, esse daí ‘tá numa pressa”.
Educação de trânsito se aprende na escola
Pensando nos pequenos, o Detran Goiás criou um projeto pioneiro no Brasil, o Detranzinho. Através de atividades lúdicas, crianças dos ensinos Infantil e Fundamental de escolas públicas e particulares aprendem como se comportar de forma respeitosa no trânsito. Primeiramente, eles assistem a uma palestra sobre o assunto e depois vão para a parte dinâmica do projeto, que pode ser realizada em um dia ou em uma semana dependendo da quantidade alunos.
A UEG também tem o Programa Educando e Valorizando a Vida (EVV). Professores Examinadores de Trânsito do EVV/UEG realizam palestras, teatros, seminários, oficinas, blitzen virtuais e presenciais, semanas educativas e concurso, com uma linguagem didática, no Ensino Fundamental 1ª e 2ª fase, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA) nas escolas públicas de Goiânia, em parceria com a Secretaria Estadual da Educação. Já foram beneficiadas 83 instituições de ensino e quase 48 mil alunos atendidos.A gerente de Educação para o Trânsito do órgão, Priscila Carandina, informa que quase 18 mil alunos já foram atendidos desde setembro de 2013, quando o projeto foi criado. “O Detranzinho tem um efeito multiplicador. A criança é uma esponja, tudo que ela aprende, ela passa. Temos que fazer esse círculo da corrente do bem na área do trânsito. Investir na educação é colher frutos a curto, médio e longo prazos”. A proposta da educação para o trânsito se estende aos estudantes do Ensino Médio. Aproximadamente 61 mil alunos já assistiram a palestras educativas de como ser um cidadão mais respeitoso com o próximo, seja como condutor, seja como pedestre.
Um estudo do Ministério da Saúde revela que a frequência de adultos que dirigem após o consumo abusivo de álcool foi reduzida em 45% em sete anos. O índice passou de 2% em 2007, para 1,1% em 2013. A redução mostra uma mudança significativa nos hábitos da população após a aprovação das duas edições da Lei Seca (2008-2012), tornando mais rígida a proibição do consumo de álcool associado à direção. Os dados são da pesquisa Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico) do Ministério da Saúde, que entrevistou 52,9 mil pessoas maiores de 18 anos durante o ano de 2013. Veja mais aqui.Priscila Carandina cita também o programa Balada Responsável, que tem sensibilizado a população para a necessidade de mudança de comportamento no trânsito, com o intuito de prevenir acidentes e não misturar álcool e direção. “Com o Balada, a gente viu um reflexo positivo. A gente vê muito jovem chegando de táxi ou o pai deixando em uma festa, o que há dois, três anos não tinha. Houve mudança na cultura goiana”.
Tem solução?
A ação individual pode ser transformadora. Naquilo que depende só da pessoa para a melhoria do coletivo, o psicólogo Fábio diz que uma das estratégias para reduzir o estresse, e, consequentemente, as brigas no trânsito, é a pessoa sair preparada para enfrentar situações difíceis e a partir daí, elaborar um plano.
“Suponha que o motorista de ônibus pega a pista diariamente no mesmo horário. Ele sabe, portanto, que haverá engarrafamento e que alguns motoristas de veículos menores mais apressados poderão fechá-lo. Dessa maneira, antes de entrar no veículo, o motorista de ônibus deve elaborar um plano da seguinte maneira: “se eu estiver na Avenida Anhanguera, próximo a um trecho onde a pista principal se encontra com a Marginal, então eu deixarei um carro passar na minha frente. E o motorista que trafega na Marginal, também deve fazer um plano “se eu estiver na Marginal próximo ao trecho onde essa pista se encontra com a Avenida Anhanguera, então eu entrarei na fila caso exista um espaço adequado para meu veículo. De certa forma, a implementação de intenção é um benefício para o sujeito e para o outro que convive com ele no trânsito, assim todos ganham com isso”, explica Fábio.
Para ele, agindo assim, essa atitude com o tempo se torna automática e todos agirão de uma maneira mais cordial. Entretanto, quando esta estratégia e outras já foram tentadas e não alcançadas com êxito, Fábio recomenda procurar um médico e/ou psicólogo para que a tensão do trânsito não afete a qualidade de vida.
Fonte: http://www.goiasagora.go.gov.br/crianca-informada-adulto-paciente-transito-mais-solidario/ - Acesso em 04/12/2014
Estou de pleno acordo com todo o texto. Parabéns a todos!
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